DESENHO IN NATURA

6–9 minutos

·

·

Eran Webber
ERAN WEBBER | carvão

“O Desenho não se encontra fora do traço, está dentro dele.” (Ingres)

A única prática humana que não requer reflexão é a violência. O Desenho, considerado historicamente como elemento articulador das categorias artesanais, não pode ser reduzido à dimensão que comumente lhe atribuem: a esfera técnica. Reduzir o Desenho ao âmbito empírico – ou ainda, no polo oposto, somente ao “conceito”  – implica uma mutilação de sua enunciação mais profunda: o Desenho é a resultante poética da integração entre saber e fazer.

A grande educadora e artista Fayga Ostrower enfrentou a problemática de lecionar Estética para trabalhadores com baixa escolaridade no livro “Universos da Arte”. Uma das premissas de seu método era nunca evitar a complexidade inerente em suas lições, afirmando que a Arte deixa de ser Arte quando sua profundidade é ignorada. Esta complexidade era conhecida dos mestres do passado e está à disposição dos artistas atuais, que possuem um privilégio em relação aos primeiros: alguns séculos de elaborações e teorizações. Outra vantagem do artista contemporâneo em relação ao artista clássico é dispor de uma academia organizada, estruturada em termos científicos. No passado, não era assim. O exercício teórico de se pensar a arte era errático e se limitava a artistas mais cultos e críticos fora do meio, em especial escritores e filósofos. Foi somente a partir da década de 60 do século XX que a historiografia da arte pode se emancipar da literatura. Nem mesmo havia metodologias testadas e abalizadas na antiga Academia, em termos técnicos: os métodos eram empíricos, passando diretamente de mestre a discípulo até pelo menos final do XIX, quando Charles Bargue e . Hoje, o artista deve estar ao corrente desse saber…. até porque é sempre desalentador um crítico saber mais acerca do trabalho de um artista do que o próprio artista.

A fim de fornecer ao desenhista subsídios que possibilitem o lastreamento de sua prática no campo da teoria, transformando o exercício do desenho num campo de explorações e especialmente elaborações próprias, deixemos esboçada uma conceituação inicial sobre a qual trabalharemos:

Desenho não é o traço, não é o risco, não é o gesto; não pode ser abstraído em apenas parte de suas operações ou procedimentos (tomando-se então esta parte pelo “todo”). Desenho é “disposição intelectual”[1] que não pode ser desvinculada de sua expressão plástica, sem a qual perde sua completude. E é, sobretudo, práxis – síntese precária da dialética entre solução visual e formal, intelectiva e plástica, espiritual e material – síntese que é a própria constituição do Desenho.

Se o desenho é atividade regulada pelo olhar –  conforme expressão bem conhecida (“desenhar é ver”), e objetiva a mobilização do olhar, seu meio é, então o próprio olhar. Tudo o mais são acessórios seus: ferramentas, materiais expressivos, técnicas e procedimentos técnicos, mídias em geral, suportes, etcque concorrem para seu fim. A finalidade do desenho integra o domínio do sensível, aquilo tudo que pode ser simbolizado, e que por isso foge à restrição do saber prático. A ordem teórica é capaz de apreender essa relação do sensível; a técnica aplicada só pode atuar na operacionalização desta articulação. O “conceito do desenho” não é ainda Desenho; assim como não é ainda Desenho a “técnica do desenho”. Desenho não é conceito, como não é apenas “efeito” (traço, indício físico, representação física, expressão material). Desenho é processo e articulação.

Diane Victor
DIANE VICTOR | gravura

Esta concepção não é original: estava presente já na Renascença. Foi formulada por Leonardo da Vinci e por Michelangelo sob a chave do humanismo e reformulada em termos científicos nos séculos seguintes, quando toda atividade humana foi posta a serviço do logos. Dono de uma curiosidade epistemológica ilimitada, Leonardo interessava-se igualmente pelo funcionamento do voo de um pássaro, o engenho de uma máquina, a circulação do sangue ou o movimento das águas. Não é de menor importância ter refletido acerca do Desenho em suas anotações. Inúmeros apontamentos em seus sketchbooks mostram que o artista considerava o Desenho para além de mera aplicação mecânica, tomando-o também como objeto de apreciação filosófica. A historicidade desta atitude daria um estudo interessante. Vale citar ainda que a concepção de Michelangelo, célebre rival de Da Vinci, era essencialmente a mesma: “o homem pinta com seu cérebro, não com suas mãos”.

Essa dotação intelectual chegou ao ápice na segunda metade do século XIX, quando o Desenho pode ser avaliado de forma independente. Tal autonomia permitiu sua análise enquanto obra em si mesmo, e como origem do “estilo”. Uma boa síntese disso está na epígrafe[2] de Ingres (que inicia este artigo). Ingres, este exímio desenhista, vivo e atuante ainda quando já o desenho era radicalizado nas experimentações de Cézanne e subtraído da composição pelo cromatismo dos pós-impressionistas – opunha o “arabesco da forma” ao desenho de proporções[3] que vigorava no atelier de seu próprio mestre – Jacques-Louis David, chefe da escola Neoclássica do período. A diferença cabal entre esse último e a obra de Ingres é que, enquanto o desenho acadêmico se baseava numa disposição de “correção da natureza” (onde os modelos do mundo natural eram esquadrinhados e racionalizados a fim de se extrair deles uma combinação geométrica que figurasse como imagem “ideal”), na obra de Ingres, ao contrário, contraditava-se o diálogo com a natureza, negando, em última instância, o desenho de obervação. Embora controverso, esse posicionamento se aclara se considerarmos que, para Ingres só o desenho possuía as propriedades compositivas (e inclusive cromáticas): “a linha, bem entendida, é cor”. Ingres compreendia precocemente a forma pura como “substância e meio” da arte. Talvez nenhum outro artista antes dele soube dar esta exata dignidade ao Desenho, pioneiramente desligando-o da relação com a Natureza.

Informações aqui!

Ingres conferia independência ao Desenho; desvinculava sua relação direta com os modelos da natureza. Conhecia Anatomia, é claro, mas sua representação do corpo feminino, por exemplo, possui vértebras a mais a fim de enfatizar a “beleza da curva” (“esqueci-lhe os nomes, porém os músculos são todos meus amigos”). Partidário da ars gratia artis, Ingres advertia seus discípulos a “traçarem linhas”. A Degas, que o conheceu pessoalmente em 1855, disse: “Desenhe as linhas, jovem, muitas linhas, que venham a sua mente ou da natureza; dessa maneira você vai se tornar um grande artista”. O conselho nos sinaliza o seguinte: na exploração da forma, em suas relações e procedimentos, é que se encontra o Desenho, independentemente dos modelos, da natureza ou do cálculo proporcional. Daí é que o Desenho está “dentro do traço”.

Essa concepção motivou todo o espírito modernista na Arte: a cisão entre o olho e o modelo, a linguagem e o mundo. A “crise da representação” não começa propriamente com Cézanne – Ingres, o último dos clássicos, já havia enunciado a sua formulação. Era disso tudo que a ação revolucionária de Gustave Coubert se afastava, quando lançou os fundamentos do novo estilo realista no Pavillon du Réalisme de 1855[4].

Gillian Lambert, Shirt, Graphite on Paper,  2011
GILLIAN LAMBERT | grafite sobre papel

Mas foi o Impressionismo a primeira escola artística a quebrar efetivamente a aliança entre o Desenho e o olho. Este fora o período em que o objeto rompeu seu pacto com a visão: a ciência óptica revelou que as cores são reverberações luminosas e que aquilo que vemos dos objetos são falsas impressões; a sensibilização da retina foi entendida então como mera impressão visual. A descoberta dos fenômenos luminosos justifica também o desprezo de Monet pela temática: “o tema é uma coisa secundária; o que eu quero reproduzir é o que existe entre ele e eu”. O olho pode assim libertar-se da falsidade aparente para se reconciliar com a verdade da representação.

O modelo não está no Desenho e o Desenho não está do modelo. A natureza não está dentro da forma; o Desenho, contudo, não é só forma. Se assim fosse, tal como um cego guiado no escuro pelo cálculo do artista, dele não resultaria nenhuma representação, nenhuma poética. O desenho é forma e espírito: forma, enquanto ponto, linha e plano; espírito, quando – por meio da habilidade que somente a mão treinada pelo olho pode realizar e perceber, seus elementos instauram  justamente o que eles próprios não dizem senão em  articulação – e que no entanto, sem eles, não apareceria.

Steve Caldwell
STEVE CALDWELL | acrílico sobre painel

[2] VALÉRY, Paul. Degas dança desenho. São Paulo, Cosac Naifi,2003, p. 55.

[3] Idem.

[4] O primeiro não oficial “Salão dos recusados”, quando a iniciativa pioneira e radical de Gustave Coubert instaurou a escola realista na pintura rearticulando a figura humana dentro da arte, e a própria forma de exibição artística.

____

imagem capa: Fotografia | Edgar Degas sentado diante de uma escultura de Albert Bartholomé (c. 1895, gelatin silver print, 11¼″ x 16½″ [28.6 x 39.4 cm]). Musée d’Orsay.

“O Desenho não se encontra fora do traço, está dentro dele.” (Ingres) A única prática humana que não requer reflexão é a violência. O Desenho, considerado historicamente como elemento articulador das categorias artesanais, não pode ser reduzido à dimensão que comumente lhe atribuem: a esfera técnica. Reduzir o Desenho ao âmbito empírico – ou ainda,…

8 respostas para “DESENHO IN NATURA”.

  1. Todas as referências que estou lendo no momento. Tô amando seus textos Gustavot <3

    Curtido por 2 pessoas

    1. Obrigado querida… Beijão, G!

      Curtir

  2. Por que vc é tão incrível em suas postagens !! um dia retendo trazer a minha universidade

    Curtido por 1 pessoa

  3. Avatar de Elisabete Timm

    Concordo, mas com uma ressalva de que desenho, a arte em si não se explica, não se disseca, pq arte é antes de mais nada instinto, sentimento, exemplificando os auto ditadas que são dotados de talentos natos e que não procedem de nenhuma técnica. Arte é interior que escapa e se expressa das maneiras mais inesperadas.

    Curtido por 1 pessoa

  4. Grata descoberta sobre o Sr Diaz!

    Curtido por 1 pessoa

  5. […] Falamos da atinência à técnica – alvo da crítica de Valéry; falemos também de seus limites. Reduzir a arte ao âmbito empírico implica mutilar sua natureza mais profunda: o Desenho é a resul…. […]

    Curtir

  6. Olá. De onde vem esse ditado, “a única prática humana que não requer reflexão é a violência”? Ouvi isso (ou ao menos algo muito parecido) há muitos anos e agora encontrei de novo em seu texto por acaso.

    Curtir

    1. Olha, até onde lembro é elaboração minha, pode usar à vontade! Rssss
      Se li em outro lugar não lembro, mas quem sabe!

      Curtir

Deixe um comentário

Feature is an online magazine made by culture lovers. We offer weekly reflections, reviews, and news on art, literature, and music.

Please subscribe to our newsletter to let us know whenever we publish new content. We send no spam, and you can unsubscribe at any time.

Voltar

Sua mensagem foi enviada

Designed with WordPress.