Toda expressão artística é, antes de tudo, expressão de um erro. Tenho uma ideia ou conceito que me parecem perfeitos; basta lançar mão de um lápis: pronto, o traço já não está à altura da ideia, o desenho não expressa devidamente o conceito. Por mais que tente aprimorá-lo, a dimensão platônica implícita em toda ação humana impõe uma exigência (alter egóica) que frustra a experimentação. Por isso Samuel Beckett se refere ao processo artístico assim: “errar, errar de novo, errar melhor”.

Ser artista não significa calcular e contar, mas sim amadurecer como a árvore, que não apressa a sua seiva e enfrenta tranquila as tempestades da primavera, sem medo de que depois dela não venha nenhum verão.
RILKE, Cartas a um jovem poeta
A arte é, de fato, admissão de um erro. E sendo, portanto, um endereçamento ao equívoco, a arte acaba ao mesmo tempo por significar uma condição que deve ser negada. Eis uma das razões porque é difícil assumir-se artista – afinal, é difícil assumir erros. Sem eles, contudo não haverá aprendizado, que só pode dar-se em dialética com os desvios, as claudicações do percurso, os embates no recontro com a matéria expressiva. Isso é sabido desde os diálogos platônicos – onde o que torna a ignorância evidente é a contraposição crítica; dela é que o saber provém.
Este texto é uma síntese do que veremos no primeiro encontro da terceira edição do PROCESSOS POÉTICOS, a ser ministrado entre os dias 02 de Abril e 11 de junho de 2022. Partilhamos aqui dois importantes elementos que nos parecem imprescindíveis na constituição de uma poética: a busca pela interlocução e o reconhecimento da inutilidade da arte.
A falta de interlocução
Elogios estragam o artista. A crítica, pelo contrário, indica a resistência necessária ao trabalho, refina o cálculo estrutural que o deve sustentar. Dói. Mas sofrimento faz parte do processo, é parte essencial dele. A dificuldade de se lidar com críticas se deve, talvez ao fato de que, em depositando muito investimento subjetivo em seu trabalho, o artista recebe a crítica como se dirigida a si mesmo. Toda crítica é sobre o trabalho, sobre a produção do artista, e é bom que seja assim – é uma celebração da liberdade e do pertencimento gerado por aquilo que foi socializado; porque todo trabalho artístico deixa de pertencer ao artista quando é compartilhado. Quem crítica, sente-se no direito de criticar porque aquilo que viu passou a fazer parte de suas experiências também. Como a produção artística é produto comum, como tudo o que é público, ela cresce e melhora sob o livre exercício de múltiplos pontos de vista. A crítica – mesmo a mais leviana observação de um frequentador ocasional de museus, é uma das poucas formas com que o público pode interagir com o fenômeno estético.

Também a solidão, parte do ofício, o isola o artista de interlocuções que poderiam, digamos, treiná-lo no diálogo crítico, calibrando expectativas sobre a resposta do público. Este último é o que mais prejudica – David Wallace já sublinhava “somos muito, muito solitários”. Como um cantor sem a caixa de retorno a partir da qual pode julgar a altura de sua voz.
O artista deve entender que a crítica faz parte da obra, ajuda a constituí-la enquanto produção simbólica, pois o trabalho artístico não é sobre ele, artista, é sobre o outro; sobre a afirmação da impossibilidade mesma da comunicação entre os sujeitos, sobre a múltipla e equívoca interpretação da verdade.
O trabalho artístico é, sobretudo, sobre tudo e nada ao mesmo tempo, sobre compartilhar com o outro aquilo que nos faz enigmas à procura de máscaras esfíngicas que deem voz à nossa indefinição comum. Não é sobre o artista, o seu sofrimento, a sua percepção íntima e particular do mundo. Por que, afinal, a percepção do artista seria melhor e mais digna de ser compartilhada? Por que seríamos obrigados a aturar sua dor, nós que já possuímos causas suficientes de sofrimento? Quando vejo uma peça artística, nela procuro a mim mesmo, procuro o que me qualifica como sujeito pertencente ao mesmo jogo simbólico; não procuro nela o artista, a sua pessoa em específico e sua subjetividade – procuro a minha subjetividade. Ao me deparar com um objeto que descortina algo desconhecido de mim mesmo, sei que estou diante de um objeto artístico (essa concepção formulei a partir de Ferreira Gullar).
A melhor prática para se relacionar com a crítica é, então entender que ela é direcionada ao trabalho e tem a ver com sua recepção, não com o artista. Assim como o crítico deve aprender a não transformar uma ofensa em crítica, o artista precisa aprender a não transformar uma crítica em ofensa. Entendê-la como contribuição de um outro que se sentiu livre o suficiente para reagir a um trabalho que lhe despertou interesse, que lhe afetou de algum modo. Afinal, é exatamente isso o que o artista quer (dá-se ao trabalho de produzir para o público, e não quer que este emita juízos?). A crítica funciona como a síntese de uma triangulação: obra (tese) – crítica (antítese) – síntese. Se a produção não sobre-existe à crítica, então esta crítica apenas adiantou o que o tempo faria de qualquer modo. Se uma obra ultrapassa a crítica sobre ela, é porque o crítico se equivocou; do contrário, a crítica foi merecida e só resta aceitá-la. Sobretudo devemos pensar a crítica como uma interlocução que “soma” ou “adianta” ao artista, as questões envolvidas na recepção pública de seu trabalho.

Na arte contemporânea – onde se pode tudo, juízos de valor são censurados. É o paradoxo de Popper: não se pode tolerar os intolerantes. Acontece que, embora se negue e publicamente se evite emitir juízos, é absolutamente claro que há critérios (embora estes não sejam claros). O artista que decide não se preocupar com critérios, pode até vir a alcançar um trabalho brilhante – mas seu brilho não será visto pela crítica; será mesmo ofuscado pela horda que disputa a atenção da crítica. A inocência foi perdida há muito tempo no mundo da arte: o artista não espera mais condescendência das instituições por qualquer valor intrínseco em seu trabalho. Toda produção é, a princípio válida para o sistema das artes; mas o sistema que diz que seu trabalho é válido não garante nada: para ele, nem todos verão a luz; as vitrines são limitadas, e por isso o sistema regula o que aparece ou não. Se você não seguir certo receituário, especialmente baseado em networking e benchmarking, sua obra não estará nas galerias, nem nos museus, nem vencerá Editais. A verdade é que todo trabalho é válido e bom e todo artista é livre; mas uns são “mais livres”, e alguns trabalhos melhores do que outros…
Quanto aos elogios, estes abaixam o padrão, não apenas individual, mas mesmo geral da produção artística. O elogio a trabalhos ruins coloca os trabalhos muito bons na esfera do “excepcional”, ou seja, os retira do campo do possível (da normalidade). Se digo que um trabalho ruim é “muito bom”, quando estiver diante de um trabalho realmente muito bom a única coisa que me restará dizer é que é “excepcional”, “hors concours”, está “acima de qualquer juízo”. Como consequência, o padrão geral vai se degradando e uma régua baixa passa a ser o nível geral – o que aplaina o padrão da crítica, e também da produção. Unir artistas ruins e bons, experientes e inexperientes, sob os mesmos critérios, ou ainda fingir que não existem critérios e, no entanto eleger sempre os mesmos nos salões e circuitos, prejudica ambos: os ruins, equiparando-se aos bons deixam de se esforçar; os bons perdem referência do que são porque a má comparação desensina o público quanto à qualidade artística.
A arte inútil
A arte é sempre produto de um acúmulo. Nunca se parte dela como dado pré-determinado. Frases do tipo “quero ser artista” ou “procurei uma dimensão artística ali” etc. carregam certo anacronismo, uma confusão temporal: a arte só pode ser percebia a posteriori, depois de já realizada – algo que se vê como de um espelho, retrospectivamente. É o resultado final espontâneo e aleatório de um processo, esse sim em certa medida determinado, dirigido, objetivado.
Aquele anacronismo resulta de tomarmos como exemplos de arte coisas que são na verdade “produtos artísticos”. Mas a arte não é a síntese plástica final – ela é o processo imaterial que produz a síntese. Portanto, não é visível, não pode ser quantificada em termos objetivos.
Se todas as obras de arte do mundo pulverizassem, a arte acabaria? Instintivamente respondemos que não; sabemos que a arte não se compõe de coisas, mas de certo modo de fazer coisas; um modo que concorre para finalidade nenhuma. Não canso de refletir sobre aquela distinção entre os seres humanos e os animais: o que nos distingue deles não é o fato de podermos pensar, produzir e acumular – animais também fazem isso, formigas, castores, pássaros produzem e acumulam; e é mais do que óbvio que todos eles podem pensar. O que nos distingue enquanto espécie é a capacidade de realizar coisas inúteis, e é precisamente aí que a arte e toda a dimensão estética, artística e filosófica se encontra.
Somos distintos dos outros animais devido à produção da inutilidade – e fazemos isso não como condição ou necessidade, mas justamente para marcar nossa independência às formas de condicionamento.
Em resumo, será importante na constituição de uma poética a admissão de que, embora fruto de um acúmulo (e que demanda grande investimento, objetivo e subjetivo), seu resultado artístico é aleatório, podendo mesmo não se dar. No caso de dar-se algum efeito estético, contudo, ele não terá utilidade alguma para ninguém. Pode cumprir uma função social de socialização do simbólico, de educação estética, de partilha do sensível; porém não será útil ao mundo material. Além disso, a melhor prática, como dissemos, é aceitar críticas e estar imune a elogios – a boa crítica demonstra interesse real no trabalho, o elogio costuma ter por objetivo adular a pessoa do artista.
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Mais informações sobre a 3ª edição do Processos Poéticos no site processospoeticos.com. Matrículas abertas até 02 de abril. O restante do conteúdo está sintetizado nos artigos A Desinvenção da visão, e A Desinvenção da visão (Poéticas) – Parte I, ambos elaborado para edições anteriores do curso. Aqui você encontra também o Programa completo!
Trechos da edição anterior:
Capa do artigo:
WENDELIN WOHLGEMUTH “Onlookers” 2017 | óleo sobre painel (20″ x 24″)