[PROCESSOS POÉTICOS 3ª ED] PRIMEIRA AULA | DESINVENÇÃO DA VISÃO (PARTE 1)

Toda expressão artística é, antes de tudo, expressão de um erro. Tenho uma ideia ou conceito que me parecem perfeitos; basta lançar mão de um lápis: pronto, o traço já não está à altura da ideia, o desenho não expressa devidamente o conceito. Por mais que tente aprimorá-lo, a dimensão platônica implícita em toda ação humana impõe uma exigência (alter egóica) que frustra a experimentação. Por isso Samuel Beckett se refere ao processo artístico assim: “errar, errar de novo, errar melhor”.

ANNE-CHRISTINE RODA, “Le canapé vert, 2011 | óleo sobre tela (255x135cm)

Ser artista não significa calcular e contar, mas sim amadurecer como a árvore, que não apressa a sua seiva e enfrenta tranquila as tempestades da primavera, sem medo de que depois dela não venha nenhum verão.

RILKE, Cartas a um jovem poeta

A arte é, de fato, admissão de um erro. E sendo, portanto, um endereçamento ao equívoco, a arte acaba ao mesmo tempo por significar uma condição que deve ser negada. Eis uma das razões porque é difícil assumir-se artista – afinal, é difícil assumir erros. Sem eles, contudo não haverá aprendizado, que só pode dar-se em dialética com os desvios, as claudicações do percurso, os embates no recontro com a matéria expressiva. Isso é sabido desde os diálogos platônicos – onde o que torna a ignorância evidente é a contraposição crítica; dela é que o saber provém.

Este texto é uma síntese do que veremos no primeiro encontro da terceira edição do PROCESSOS POÉTICOS, a ser ministrado entre os dias 02 de Abril e 11 de junho de 2022. Partilhamos aqui dois importantes elementos que nos parecem imprescindíveis na constituição de uma poética: a busca pela interlocução e o reconhecimento da inutilidade da arte.

A falta de interlocução

Elogios estragam o artista. A crítica, pelo contrário, indica a resistência necessária ao trabalho, refina o cálculo estrutural que o deve sustentar. Dói. Mas sofrimento faz parte do processo, é parte essencial dele. A dificuldade de se lidar com críticas se deve, talvez ao fato de que, em depositando muito investimento subjetivo em seu trabalho, o artista recebe a crítica como se dirigida a si mesmo. Toda crítica é sobre o trabalho, sobre a produção do artista, e é bom que seja assim – é uma celebração da liberdade e do pertencimento gerado por aquilo que foi socializado; porque todo trabalho artístico deixa de pertencer ao artista quando é compartilhado. Quem crítica, sente-se no direito de criticar porque aquilo que viu passou a fazer parte de suas experiências também. Como a produção artística é produto comum, como tudo o que é público, ela cresce e melhora sob o livre exercício de múltiplos pontos de vista. A crítica – mesmo a mais leviana observação de um frequentador ocasional de museus, é uma das poucas formas com que o público pode interagir com o fenômeno estético.

LILI MORRIS, “Celebrity”, 2016 | óleo sobre tela (36′ x 36′)

Também a solidão, parte do ofício, o isola o artista de interlocuções que poderiam, digamos, treiná-lo no diálogo crítico, calibrando expectativas sobre a resposta do público. Este último é o que mais prejudica – David Wallace já sublinhava “somos muito, muito solitários”. Como um cantor sem a caixa de retorno a partir da qual pode julgar a altura de sua voz.

O artista deve entender que a crítica faz parte da obra, ajuda a constituí-la enquanto produção simbólica, pois o trabalho artístico não é sobre ele, artista, é sobre o outro; sobre a afirmação da impossibilidade mesma da comunicação entre os sujeitos, sobre a múltipla e equívoca interpretação da verdade.

O trabalho artístico é, sobretudo, sobre tudo e nada ao mesmo tempo, sobre compartilhar com o outro aquilo que nos faz enigmas à procura de máscaras esfíngicas que deem voz à nossa indefinição comum. Não é sobre o artista, o seu sofrimento, a sua percepção íntima e particular do mundo. Por que, afinal, a percepção do artista seria melhor e mais digna de ser compartilhada? Por que seríamos obrigados a aturar sua dor, nós que já possuímos causas suficientes de sofrimento? Quando vejo uma peça artística, nela procuro a mim mesmo, procuro o que me qualifica como sujeito pertencente ao mesmo jogo simbólico; não procuro nela o artista, a sua pessoa em específico e sua subjetividade – procuro a minha subjetividade. Ao me deparar com um objeto que descortina algo desconhecido de mim mesmo, sei que estou diante de um objeto artístico (essa concepção formulei a partir de Ferreira Gullar).

A melhor prática para se relacionar com a crítica é, então entender que ela é direcionada ao trabalho e tem a ver com sua recepção, não com o artista. Assim como o crítico deve aprender a não transformar uma ofensa em crítica, o artista precisa aprender a não transformar uma crítica em ofensa. Entendê-la como contribuição de um outro que se sentiu livre o suficiente para reagir a um trabalho que lhe despertou interesse, que lhe afetou de algum modo. Afinal, é exatamente isso o que o artista quer (dá-se ao trabalho de produzir para o público, e não quer que este emita juízos?). A crítica funciona como a síntese de uma triangulação: obra (tese) – crítica (antítese) – síntese.  Se a produção não sobre-existe à crítica, então esta crítica apenas adiantou o que o tempo faria de qualquer modo. Se uma obra ultrapassa a crítica sobre ela, é porque o crítico se equivocou; do contrário, a crítica foi merecida e só resta aceitá-la. Sobretudo devemos pensar a crítica como uma interlocução que “soma” ou “adianta” ao artista, as questões envolvidas na recepção pública de seu trabalho.   

VIKTORIA SAVENKOVA, diante de sua pintura “Sonhos de Maria” (150x100cm, 2019).

Na arte contemporânea – onde se pode tudo, juízos de valor são censurados. É o paradoxo de Popper: não se pode tolerar os intolerantes.  Acontece que, embora se negue e publicamente se evite emitir juízos, é absolutamente claro que há critérios (embora estes não sejam claros). O artista que decide não se preocupar com critérios, pode até vir a alcançar um trabalho brilhante – mas seu brilho não será visto pela crítica; será mesmo ofuscado pela horda que disputa a atenção da crítica. A inocência foi perdida há muito tempo no mundo da arte: o artista não espera mais condescendência das instituições por qualquer valor intrínseco em seu trabalho. Toda produção é, a princípio válida para o sistema das artes; mas o sistema que diz que seu trabalho é válido não garante nada: para ele, nem todos verão a luz; as vitrines são limitadas, e por isso o sistema regula o que aparece ou não. Se você não seguir certo receituário, especialmente baseado em networking e benchmarking, sua obra não estará nas galerias, nem nos museus, nem vencerá Editais. A verdade é que todo trabalho é válido e bom e todo artista é livre; mas uns são “mais livres”, e alguns trabalhos melhores do que outros…

Quanto aos elogios, estes abaixam o padrão, não apenas individual, mas mesmo geral da produção artística. O elogio a trabalhos ruins coloca os trabalhos muito bons na esfera do “excepcional”, ou seja, os retira do campo do possível (da normalidade). Se digo que um trabalho ruim é “muito bom”, quando estiver diante de um trabalho realmente muito bom a única coisa que me restará dizer é que é “excepcional”, “hors concours”, está “acima de qualquer juízo”. Como consequência, o padrão geral vai se degradando e uma régua baixa passa a ser o nível geral – o que aplaina o padrão da crítica, e também da produção. Unir artistas ruins e bons, experientes e inexperientes, sob os mesmos critérios, ou ainda fingir que não existem critérios e, no entanto eleger sempre os mesmos nos salões e circuitos, prejudica ambos: os ruins, equiparando-se aos bons deixam de se esforçar; os bons perdem referência do que são porque a má comparação desensina o público quanto à qualidade artística.

A arte inútil

A arte é sempre produto de um acúmulo. Nunca se parte dela como dado pré-determinado. Frases do tipo “quero ser artista” ou “procurei uma dimensão artística ali” etc. carregam certo anacronismo, uma confusão temporal: a arte só pode ser percebia a posteriori, depois de já realizada – algo que se vê como de um espelho, retrospectivamente. É o resultado final espontâneo e aleatório de um processo, esse sim em certa medida determinado, dirigido, objetivado.

Aquele anacronismo resulta de tomarmos como exemplos de arte coisas que são na verdade “produtos artísticos”. Mas a arte não é a síntese plástica final – ela é o processo imaterial que produz a síntese. Portanto, não é visível, não pode ser quantificada em termos objetivos.

Se todas as obras de arte do mundo pulverizassem, a arte acabaria? Instintivamente respondemos que não; sabemos que a arte não se compõe de coisas, mas de certo modo de fazer coisas; um modo que concorre para finalidade nenhuma. Não canso de refletir sobre aquela distinção entre os seres humanos e os animais: o que nos distingue deles não é o fato de podermos pensar, produzir e acumular – animais também fazem isso, formigas, castores, pássaros produzem e acumulam; e é mais do que óbvio que todos eles podem pensar. O que nos distingue enquanto espécie é a capacidade de realizar coisas inúteis, e é precisamente aí que a arte e toda a dimensão estética, artística e filosófica se encontra.

Somos distintos dos outros animais devido à produção da inutilidade – e fazemos isso não como condição ou necessidade, mas justamente para marcar nossa independência às formas de condicionamento.

Em resumo, será importante na constituição de uma poética a admissão de que, embora fruto de um acúmulo (e que demanda grande investimento, objetivo e subjetivo), seu resultado artístico é aleatório, podendo mesmo não se dar. No caso de dar-se algum efeito estético, contudo, ele não terá utilidade alguma para ninguém. Pode cumprir uma função social de socialização do simbólico, de educação estética, de partilha do sensível; porém não será útil ao mundo material. Além disso, a melhor prática, como dissemos, é aceitar críticas e estar imune a elogios – a boa crítica demonstra interesse real no trabalho, o elogio costuma ter por objetivo adular a pessoa do artista.

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Mais informações sobre a 3ª edição do Processos Poéticos no site processospoeticos.com. Matrículas abertas até 02 de abril. O restante do conteúdo está sintetizado nos artigos A Desinvenção da visão, e A Desinvenção da visão (Poéticas) – Parte I, ambos elaborado para edições anteriores do curso. Aqui você encontra também o Programa completo!

Trechos da edição anterior:


Capa do artigo:

WENDELIN WOHLGEMUTH “Onlookers” 2017 | óleo sobre painel (20″ x 24″)

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Publicado por Gustavot Diaz

Artista visual e escritor, co-fundador do espaço artístico MÍMESIS | Conexões Artísticas em Curitiba, e ministrante do curso Processos Poéticos. Vive atualmente em Porto Alegre (RS).

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