Vimos como a psicanálise confere uma constituição radicalmente diferente à “realidade” daquela enunciada pela filosofia e pela ciência até então. Se for compreendida por meio de três registros estruturantes – Real, simbólico e imaginário, ela se torna operativa e sua interpretação mais eficiente. Trazemos alguém mais qualificado para reforçar essa caracterização:
Vamos recuperar um pouco do conteúdo do último encontro, quando contamos a história do sonho da “criança em chamas” para ilustrar esses conceitos, e como Freud levou a sério e extraiu as propriedades do sonho dando consequência às interpretações. O fundador da psicanálise compreendeu que, entre outras, uma das funções do sonho é manter o sonhador dormindo. Como? Preservando o sono dos desejos inconscientes. A metáfora de que ele conta pra explicar esta concepção é a do guardião de uma festa a rigor, como um baile à fantasia, onde o sonho transveste eventuais intrusos, de modo a apresenta-los como os demais a fim de não serem incongruentes a ponto de produzir excitação capaz de acordar o sonhador. Como as excitações e estímulos externos são permanentes, é necessário um mecanismo intrínseco para, de algum modo nos manter dormindo (função regeneradora do sono). Esses “intrusos”, segundo Freud são desejos que foram reprimidos. Se foram reprimidos, se devia à incompatibilidade com a moral – quer dizer, já na vida consciente foram negados por causar alguma perturbação psíquica; se irrompessem no sonho, punham o sono a perigo.
O sonho tem, pois, uma função de “camuflar” esse desejo em imagens/representações, de modo que quando eventualmente irrompa no sonho, não surja em toda a sua intensidade real – daí o porquê de se apresentar apenas como “imagem”. O sonho é feito de matéria plástica (de onde advém boa parte de seu absurdo); tal estranheza seria o próprio mecanismo do sonho tentando “disfarçar” desejos inconscientes.
O sonho passava a ser, após Freud, uma realização alucinatória do desejo. Suas formas fantásticas dão disfarce aos desejos inconscientes que, assim se realizam (ainda que de forma alucinada).
No sonho da criança em chamas, não teria havido tempo de o “porteiro” do sonho travestir aquele “desejo” num disfarce aceitável; o desejo teria se apresentado na forma em carne viva, em forma de desejo puro. “O que é que desperta?”, pergunta Lacan. O que o desperta é o Real latente em seu inconsciente, a grande falta que sente: o remorso por ter deixado o filho morrer.
Diferente de Freud, Lacan explica essa mecânica do desejo por meio da linguagem, se valendo do Estruturalismo (Claude Lévi-Straus) e da Linguística (Ferdinand Saussure). Lacan entende que inconsciente está mais próximo da coordenação dos significantes (“imagem acústica da palavra”, as letras, verbetes, enfim, as formas visíveis da linguagem) do que dos significados (conceitos). Significante e significado juntos formam os signos. Assim, se “o inconsciente se estrutura como uma linguagem”, e esta última se estrutura fundamentalmente pelos significantes – logo, o inconsciente está na forma como eu digo, não no suposto significado do dizer.
Assim, ele sempre retorna, viajando através das cadeias significantes da linguagem, alterando a forma com que se apresenta, e precisamente assim ocultando sua significação, mantendo escondido seu “verdadeiro significado (objeto)”. Não é propriamente uma instância dotada de temporalidade, é na linguagem (na forma como dizemos as coisas) que o inconsciente está. Não existe outra substância onde ele pode se manifestar: no tecido da linguagem é que opera, na linguagem é que as formas de retorno desse Real vão se deixando entrever – por seu espaço negativo (como na matáfora que usei do “homem invisível”). Essas formas estão presentes o tempo todo entre nós e se apresentam, de fato, como articulações significantes: sonhos, atos falhos, chistes, e principalmente, sintomas (que, segundo Freud entendia, eram “mensagens” do inconsciente).
Os significantes tem um alto valor para Lacan porque permitem a “elisão” do verdadeiro objeto; permitem que os objetos estejam representados em ausência. Quer dizer que na relação do sujeito e seu desejo, aparecem objetos – faculdade, trabalho, carro, casa, família, filho, etc. O que se deseja aí de fato não são os objetos, mas os significantes. E os significantes representam o desejo do outro, pois as palavras (significantes) são articulações coletivas, têm sentido social, simbólico. Como sempre desejamos “algo” (o desejo não pode operar no nada), desejamos então por meio de significantes. Assim, no fundo desejamos o que os demais desejam. Na síntese de Lacan “o desejo do homem é o desejo do outro”: desejamos “como” os outros, “do mesmo modo” que aqueles que admiramos desejam – pois assim queremos ser por eles reconhecidos.
Os objetos de nossos desejos vêm junto com uma experiência da “falta em ser” (cujo conceito, Lacan tomará emprestado do filósofo Martin Heidegger: “o significante instala a falta de ser na relação ao objeto”). Não são fonte de satisfação, pelo contrário: uma vez adquiridos, se convertem logo em insatisfação, mas indicam um ser do sujeito que é incompleto, insuficiente, falta em seu âmago. Eis o desejo, o qual se estrutura em relação à falta. Quando o outro me deseja, desejo estar no lugar daquilo que falta ao outro – ou seja, quero ser o objeto que completa a sua falta. E quando eu desejo, quero que o outro apareça como objeto que me complete, que suture a minha falta (mas isso não acontece nunca; a falta é substantiva, irrevogável e intransferível). Em outro termos: “é dar o que não se tem, a quem não o quer” – modo com o qual Lacan dá uma interessante definição do que entende por “amor”.

Os significantes se arranjam e desarranjam em cadeia para alterar permanentemente os significados. Assim o desejo sustenta a falta: quanto mais se deseja, mais se pode manter-se “em falta”. Desejar depende de sustentar a falta – não é algo ruim, pelo contrário, é o que nos mantem ativos, buscando algo que nunca se encontra, mas que nos mantem procurando. Por isso, “o inconsciente tem estrutura de linguagem”, no caso, uma forma bem específica da linguagem: a metonímia. Essa figura gramatical designa quando uma parte responde pelo todo. A parte intercambiante são os significantes; o todo é o objeto do desejo (a falta). Já o sintoma assume outra estrutura: a de metáfora – a metáfora de um desejo recalcado que utiliza o próprio corpo como suporte de escrita, encontrando assim uma forma de se inscrever e de dizer. O inconsciente funcionaria, então, analogamente às metáforas e metonímias.
Estádio do espelho
O que nos interessa não é um levantamento histórico, mas em que a Psicanálise pode oferecer de chaves de leitura da arte, em especial à arte contemporânea. Nosso contato com as coisas do mundo, mormente com os objetos estéticos (os objetos sensíveis, que tocam os sentidos) produzem subjetividade. Entre outros aspectos da criação, a psicanálise nos permite compreender o sentido da experiência (tema do Módulo anterior) – experiência esta que é o fundamento do fenômeno artístico.
Enquanto síntese, a arte não copia, nem reproduz a realidade (“a realidade” sequer existe); ela emula coordenadas constitutivas da experiência, uma vez que a informação que temos da realidade não passa de coordenadas simbólicas que organizam “uma experiência de realidade” para nós – o que equivale dizer que nosso contato com a realidade é bastante precário: instável, baseada muito mais em pressuposições, crenças e ideologias, sujeita às injunções desviantes dos sentidos – uma experiência que se desagrega a voltar a se agregar de outro modo com o passar do tempo, etc. Tal precariedade é, em geral o grande tema da arte – pelo menos um tema que não pode ser desconsiderado ao se pensar a arte contemporânea.
Pra começar a enlaçar arte e psicanálise, vamos considerar duas coisas: o Real só aparece sob o “fascismo da língua” (Roland Barthes); a ficção e a verdade objetiva vêm juntas. O Real é um produto, um derivado, um constructo, no mesmo horizonte da famosa síntese lacaniana: “a verdade tem estrutura de ficção”. O que entendemos por realidade é sempre suposto, porque depende essencialmente de circunstâncias subjetivas: não há acesso direto nenhum até ela. Também Heidegger dirá, relacionando objeto e observador, que a pergunta pela coisa constitui a coisa perguntada – em outras palavras, observar o fenômeno altera o fenômeno porque o condiciona a uma perspectiva.

Isso se dá em nível pessoal também. Ora, se nossa experiência de realidade como um todo funciona dentro de uma certa “alucinação” da verdade, digamos assim, como se dá nossa autopercepção, a percepção de nós mesmos para nós, nossa propriocepção? Em resumo, na vida cotidiana acontece o seguinte: a princípio, temos um eu. Ou melhor, simplesmente somos, de maneira intuitiva, espontânea. O “Eu”, contudo é uma função complexa, que vai sendo construída ao longo da vida por meio de processos de identificação. Além disso, esse “eu” não é uma coisa só, integrada, homogênea, sempre igual a si mesma. Esse “eu” é um elemento que unifica a heterogeneidade da personalidade, nos entregando a vivência de certa unidade: esse elemento é a imagem; em particular a imagem do “eu”. Ainda que esta imagem do “eu” seja decisiva na constituição da “função do Eu”, esta unidade é fruto de um enredo ilusório. Desde já, a questão toca ao artista visual: o que é uma imagem? Como se dá a experiência visual que dá substancia pro ato criativo (de que falamos no Módulo 02)?
Quase todo o edifício teórico de Lacan é pautado pela imagem; isso abre porta para que artistas e demais produtores de imagem repensem o sentido e a profundidade de sua função. O estádio do espelho que estudaremos hoje trata especificamente disso. No vídeo oferecemos uma síntese (uma gravação já um pouco antiga), desse conteúdo que foi mais profundamente abordado ao vivo durante a aula.
Arte, psicanálise, atravessamentos
O desenho cria narrativas – e essa narrativa produz afetos, cria laços. Aparentemente, no entanto, não é a visão que gera a crença no que se vê, mas o contrário: a crença é que faz a visão. Depois que o xamã na história lendária das caravelas invisíveis aos indígenas caribenhos no início da colonização (vídeo abaixo) conta aos demais sobre elas, eles então veem porque confiam nele. O conceito, o saber vem antes do olhar, e é ele que possibilita ver. O que nos mobiliza são afetos – não razões abstratas. As coordenadas de uma imagem afetam os sentidos, o que quer dizer que fisicamente incidem sobre a permeabilidade dos órgãos sensoriais, criando afecções que, por isso, recebem o nome de “estética” – do Grego aisthánesthai, “perceber, tomar conhecimento” (assim como perceber vem do latim percipere, “pegar, agarrar”). A imagem ativa a visão ao evocar os sentidos; quando se dá sentido para um afeto, tem-se uma experiência. A imagem, portanto, cria a visão, nesta mesmo ordem de ação e consequência. A experiência visual decorrente leva adiante o campo perceptivo do espectador porque esgarça os limites do possível pra incluir no mundo a imagem do impossível, do inimaginável que ainda não tem forma.
Isso explica em boa parte o poder impressionante da disseminação de fake news: não importa o conteúdo ou qualidade da informação – ela é compartilhada baseada, não apenas no viés de confirmação, mas principalmente pela relação de afeto e confiança entre remetente e emissor. Não adianta a força da razão: pessoas se mobilizam por afetos, não por conceitos ou “verdades”.
Os objetos da visão derivam de como são vistos; quer dizer que dependem dos instrumentos de representação disponíveis (os quais operam pari passu aos regimes de visualidade) – os dispositivos de produção da imagem. Vimos no primeiro Módulo como, no século XV, em conexão com a noção de “subjetividade”, se produziu uma técnica de simulação do olho humano a partir de um ponto de vista fixo: a perspectiva. Produzindo uma experiência, essa técnica engendrava também um sujeito correspondente da experiência, redundando no início da subjetividade moderna. O historiador Jonhatan Crary informa uma transformação radical de tais coordenadas experienciais que passam a compor o núcleo projetivo de uma nova experiência de subjetividade (século XX) a qual, não por acaso, coincide com o surgimento da Psicanálise e a hipótese do “inconsciente”, enunciada por Freud na Interpretação dos Sonhos.
A França do início do século XX estava descobria, enfim a cidade, e a indústria fazia girar permanentemente invenções – dentre as quais logo vão surgir a fotografia e o cinema. Mas não são as únicas. Jonathan Crary[1] faz um levantamento dos aparelhos ópticos em circulação na França no período: câmara escura e câmara clara, taumatrópio, fenacistoscópio, zootrópio, diorama, caleidoscópio, estereoscópio, estereografo, daguerreótipo, negatoscópio e espelho negro (Crary defende a tese de que as condições à recepção fotográfica já estariam pressupostas na Europa desde, pelo menos, o século XVII com o advento da “câmara escura”). Não somente apta à recepção da fotografia e de outros modos de percepção da imagem, a visão vai tomando protagonismo na cognição e assumindo papel central no vigésimo século:
As bases do espetáculo e a “percepção pura” do modernismo abrigam-se no território recém-descoberto de um espectador plenamente corporificado, mas o triunfo final de ambos depende da negação do corpo, de suas pulsações e seus espectros, como fundamentos da visão. grifo meu (CRARY, 2012)
Essa prevalência, no entanto, inicia no século XIX, onde:
“a ruptura com os modelos clássicos de visão foi muito mais do que uma simples mudança na aparência das imagens e das obras de arte, ou nas convenções de representação. Ao contrário, ela foi inseparável de uma vasta reorganização do conhecimento e das práticas sociais que, de inúmeras maneiras, modificaram as capacidades produtivas, cognitivas e desejantes do sujeito humano.” (idem)
É nesse contexto que a psicanálise surge (1901) – no contexto de uma escopofilia (desejo de ver) incipiente, que hoje toma todas as formas da vida social. Quando a publicação da Interpretação dos Sonhos (1901) lança a hipótese do “inconsciente”, os artistas reconhecem ali uma fonte de vitalidade contra o pano de fundo de uma miríade de imagens produzidas e reproduzidas que assolava a Europa. Lá onde reinava a escopofilia, a curiosidade mórbida próxima do fetiche por ver imagens (uma distração comum da classe média, por ex eram as visitas ao morgue), a arte estava buscando escapar dos limites da conformação regular, antecipatória da imagem técnica, mecânica; o que os artistas buscavam se dirigia para um mundo ‘fora do mundo’ – assim surge o Surrealismo. Um parêntesis aqui: mais do que escopofílica, hoje vivemos uma escoptofilia (desejo de ver e se visto).
No inconsciente, Freud descobrirá uma “outra cena” – diferente e assimétrica à cena cotidiana. Embora constituída fundamentalmente por imagens, tal cena “outra” se revelava através de palavras; e com elas Freud descobriu cifra de uma nova realidade. Para isso, emprestou da arte muitas analogias destinadas a fundamentar o campo nascente da psicanálise (um sumário das relações entre ela e os artistas pode ser lido no livro Arte e Psicanálise de Tania Rivera[2], ou em muitos outros; não será nosso tema aqui). A autora citada, para quem a arte é um “outro” cuja interlocução contribuiu à sistematização da psicanálise, afirma que fez parte do método psicanalítico “descentrar-se para buscar na arte seu próprio material”. É precisamente a “tecnologia reversa” desse método que buscaremos aplicar, descentrando o campo da arte no intuito de requerer da psicanálise a enunciação de alguns procedimentos poéticos.

A Fantasia
Falamos dos processos de subjetivação, do “estádio do espelho”, e dos três registros que compõem a estrutura ontológica da experiência na teoria lacaniana (conteúdos do primeiro e segundo Módulos); para continuar o diálogo entre as áreas, fechemos hoje com um conceito que é território comum a ambas: a fantasia. Freud, incialmente não dissociava os conceitos de fantasia e inconsciente; ambos se confundiam em sua teoria; percebe depois uma articulação entre o “sintoma” e a fantasia, cujo funcionamento é mais ou menos como segue.[3]
A sexualidade animal é instintiva, a humana é pulsional. A pulsão é uma força constante – não é cíclica como a força instintual ligada à reprodução. Diferente dos animais, a atividade sexual humana é contínua; deriva de uma energia constante chamada libido, que busca satisfação continuamente. É exatamente essa demanda contínua de satisfação das pulsões que se manifesta na que chamou de fantasia.
Na medida em que pede uma satisfação imperiosa (ela nunca abre mão de satisfação), a pulsão produz a fantasia. A pulsão insiste, pede satisfação incessantemente. A realidade objetiva, entretanto (chamada por Freud de “princípio de realidade”) impõe barreiras a essa busca de satisfação. Mas isso não impede, de forma alguma, a exigência de satisfação das pulsões – que Freud enuncia como “princípio de prazer”. Quando o princípio de prazer (“eu quero isso”) se choca contra o princípio de realidade (“não se pode ter isso”), este último transforma o primeiro numa instância psíquica subjetiva: a realidade fantasística. Tal dimensão organiza a experiência de realidade.

A organização do “aparelho psíquico” é, então regulado por um princípio de satisfação que aumenta os estímulos e a exigência, e um princípio de constância, dedicado a livrar-se de estímulos que chegam à mente, ou diminuí-los ao grau mais baixo possível (sem que, no entanto, nunca chegue a zero). Em outros termos, a pulsão se configura como uma exigência permanente de trabalho inescapável imposta ao sujeito. A fantasia é uma realidade psíquica; possui por isso estatuto e estrutura de “verdade”. Depois de Feud, Lacan dirá que a realidade não existe, ao menos não essa que nos circunda: esta nada mais é que uma experiência de realidade. A origem da criação desta espécie de “realidade paralela” é o fato de nunca abrirmos mão da satisfação. Num artigo de 1908 (Sobre as teorias sexuais infantis) Freud afirma:
Ao crescer, as pessoas param de brincar e parecem renunciar ao prazer que obtinham do brincar. Contudo, quem compreende a mente humana sabe que nada é tão difícil para o homem quanto abdicar de um prazer que já experimentou. Na realidade, nunca renunciamos a nada; apenas trocamos uma coisa por outra. (…) Da mesma forma, a criança em crescimento, quando para de brincar, só abdica do elo com os objetos reais; em vez de brincar, ela agora fantasia. A pulsão quer satisfação, ela se dirige a uma outra região, interna….. Nesse lugar ilimitado do aparelho psíquico se cria ali um princípio de realidade – que é a fantasia, enfim onde a busca de satisfação prossegue sem limites. Isso constitui a fantasia: uma realização imaginária das pulsões.
Quando essa fantasia cresce e hipertrofia, quando a busca de satisfação se fazpor demais intensa, ela como que transborda os limites psíquicos e se dirigir ao corpo. Como uma necessidade de satisfação corporal – a pulsão é obtida através dos sintomas. O sintoma na neurose é a realização daquela satisfação que foi negada, foi transferida para a fantasia, e atingiu o corpo. (O “psicótico”, em linahs gerais, seria aquele sujeito que não consegue criar essa defesa, e se choca sem mediação com a realidade – choque contra o qual ele se defende construindo um delírio ou alucinação, conforme cada sujeito).
É com a fantasia que a Psicanálise opera. Lacan diz mesmo que o “valor da Psicanálise está em operar sobre a fantasia”; ela está no cerne da experiência analítica. O núcleo do aparelho psíquico é constituído pela fantasia inconsciente (lembramos que a fantasia inconsciente é diferente do “devaneio” o tempo todo presente em nós, mas de forma consciente). Certas fantasias – consideradas intoleráveis pela razão consciente – são, porventura recalcadas para uma esfera inconsciente, produzindo uma alienação no sujeito, que não reconhece mais os próprios desejos. Dentre essas últimas – campo de maior interesse à análise, algumas vêm à consciência no curso da análise.

Uma conclusão se evidencia: o real e a realidade psíquica (essencialmente fantasística) não coincidem – esta última é constituída por cada sujeito de modo a fazer frente a um Real incognoscível. Como não interessa para nós, senão a realidade psíquica que vivemos subjetivamente, é através do seu filtro (Slavoj Zizek o chama de “anamorfose”) que nos relacionamos com os outros e com o mundo. Ou seja, a percepção é seletiva. Por isso nossa relação com o mundo é, em grande parte, alucinada: cada um vê o mundo a partir de um filtro absolutamente singular. Em resumo: “A percepção é mediatizada pelo desejo”, diria Freud – e o desejo é sustentado pela fantasia inconsciente, concluiria Lacan.
O desejo é a falta. O desejo nos diz que há uma falta gerada por uma pulsão insatisfeita. Como não há esse objeto, as fantasias se interpõem e colocam um objeto no lugar da falta. Por isso, sem a fantasia, estaríamos em contato com a falta, que é da ordem do Real (a realidade psíquica, aqui já em sentido lacaniano), portanto, insuportável. Um “objeto” de fato não existe; a fantasia inventa um objeto tencionando tamponar essa falta do real. Isso é salultar, no entanto há um perigo: colocando um objeto no lugar da falta, de algum modo aprisiona o sujeito, podendo se tornar um fenômeno patogênico e sintomático. Freud chamaria de “fixação ao objeto” – estado que restringe a visão para uma direção única, impedindo que perceba todo o resto.
Em suma, o desejo então é assumpção de uma fantasia que pede para saciar-se e satisfaz, ainda que momentaneamente, porque pode saciar-se. A falta primordial, o objeto da angústia real que nos constitui, contudo não se realiza nunca. Se acaso se satisfaz, é somente para desejar de novo, posto que a pulsão é constante. Um “objeto” efetivo do desejo não existe; é sempre um suposto objeto criado pela a fantasia pra tamponar essa falta constitutiva do real – que conhecemos pelo nome de angústia. Acompanhe o episódio de noss Podcast DESVER, onde tratamos desse tema:
[1] CRARY, J. Técnicas do observador: visão e modernidade no século XIX. Rio de Janeiro: Contraponto, 2012.
[2] RIVERA, Tania. Arte e psicanálise, Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 2002.
[3] Na obra Os três ensaios sobre a teoria da sexualidade (1905), onde aparece também o conceito de pulsão.
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Capa: MÔNICA BRESSAN, “Impermanência”, 2022 | técnica mista sobre tela (120cmx90cm)