[PROCESSOS POÉTICOS 3ª ED] QUARTA AULA | AS DIMENSÕES DA IMAGEM (PARTE II)

“Me deram um nome e me alienaram de mim”

CLARICE LISPECTOR

Desde o primeiro encontro, temos falado sobre a experiência, e concluímos que “ver” é equivalente a sofrer um tipo de experiência visual. A psicanálise oferece um instrumental teórico para compreensão da estrutura ontológica da experiência, com a vantagem adicional de que sua metapsicologia é referenciada na imagem e em suas diferentes enunciações.

SARA GALLAGHER “Outside”, 2020 | grafite sobre papel

De modo algum aqui fazemos Psicanálise: esta é indiscernível da clínica, tampouco temos capacitação específica. Advirto que os conceitos aqui refletem nossa forma pessoal de entender a linguagem psicanalítica, e abrimos mão de ser sua única, o mesmo exata – muitas dúvidas surgem quando nos aproximamos de seus elementos, geralmente com grande densidade conceitual. Apenas de muitos cursos, seminários, palestras e estudos sobre o tema, desse encontro levem o que vos toca: é o mais importante.

Recapitulando: após um breve histórico da experiência no campo da arte a partir de alguns marcos de seu aparecimento – como os afrescos de Lorenzeti e os experimentos de Bunelleschi – agora cabe falar da experiência em si, como se compõe epistemologicamente. Para isso seré preciso, mesmo que provisoriamente, desmontar o conceito comum de “realidade”. Estudar nesta profundidade a constituição da experiência possui dois objetivos claros:

  1. Entender uma boa parcela da produção contemporânea em artes, em especial a que temos chamado de Figuração Contemporânea (nosso próximo conteúdo)
  2. De que adianta refletir temas, campos semânticos e formais, etc. em nossa produção, sem saber quem é esse que pensa e produz? Não importa o que se vá representar – ou melhor, “apresentar subjetivamente”, se nada soubermos sobre o sujeito que produz. Para começar a pensar sobre o sujeito, temos que pensar nas experiências que o compõem. Estar na busca de uma linguagem autoral – significa estar em busca de um autor

Nossas escolhas, predileções estéticas, afinidades e inclinações em geral  são determinadas por um Je, que pulsa vivo por detrás de um moi (o qual compõe a identidade com o qual a gente se apresenta ao mundo). Esse moi é imaginado, um compósito imagético, uma edição de imagens – quer dizer, de “identificações”; por isso tivemos de nos haver com elas primeiro nos encontros anteriores. Esse Je e esse moi de que eu vou falo mais tardeconfiguram o sujeito. Que sujeito? O sujeito da experiência – que é o nosso objetivo hoje destrinchar, posto que não há sujeito sem experiência, nem experiência sem sujeito. Je e moi é uma diferenciação linguística que Lacan encontrou no francês, onde moi é uma forma passiva do “eu” (corresponde, mais ou menos ao “mim”, mas não tem tradução exata); enquanto Je é, diferentemente, é uma forma ativa do “eu”: eu sou, eu faço, eu proponho – je suis, je fais, je propose.

Je é um lugar de enunciação do sujeito; moi é uma função psíquica com a qual ele concebe a si mesmo. O moi surge em nós de “processos de identificação” (quando eu me identifico com um estilo de vida, por exemplo, passo a ser re-conhecido por esse estilo); é como o sujeito se vê e como se apresenta – numa versão normalmente coerente, correta, seguidor de padrões morais, que respeita as leis, que é justa, etc. O moi se dá por reconhecimento; seu fim único é esse. (A atenção dita “flutuante” do psicanalista serve para não se deixar enredar pela história contada pelo moi). O Je, contudo é formado por “processos de subjetivação”: aquele eu que comete absurdos, que deseja perversamente, que age de forma inconfessável – aquilo, afinal, que somos para nós mesmos, e mesmo o que sequer sabemos ser. Tal distinção nos pronomes evidencia a contradição entre o enredo narcisicamente construído – versão psicológica que apresento ao outro (moi), e aquilo que efetivamente produzo a partir de meu lugar de enunciação (Je).

ALBA FABRE SACRISTÁN, óleo sobre tela

Pra dar um contexto a esse termo:

Já em suas pesquisas sobre a histeria, Freud detectara uma divisão fundamental do sujeito. O sintoma histérico denuncia de forma inequívoca que a “função do eu” não está na consciência (a melhor síntese disso é a famosa frase: “o homem não é senhor de sua própria casa”). No caso emblemático da senhora Cecille (Anna von Lieben), em que aplicou inicialmente o método da “cura através da fala” (que então denominava como catártico), Freud encontra essa divisão bastante visível. Cecille sentia dores lancinantes na face e o analista procurou evocar a cena traumática que teria originado o sintoma, tal como escreve:

“Ela descreveu uma conversa que tivera com ele [seu marido] e uma observação dele que ela sentira como um áspero insulto. De repente, levou a mão à face, soltou um grande grito de dor e exclamou: ‘Foi como uma bofetada no rosto’. Com isso cessaram tanto a dor como o acesso”

FREUD, Estudos sobre a neurose, 1976, v. 2, p. 227.

O sintoma é uma forma de expressão, sobretudo corporal, algo de excitante – porém insustentável no sujeito; ele é a vazão de uma tendência interna, que ele próprio não reconhece como sua. As histéricas eram supostamente tomadas por “forças demoníacas” – algo estranho que lhes tomavam as funções, mas sobre o que acreditavam não possuir ingerência. Após os ataques histéricos – que se davam das formas mais bizarras, com simulações de coito, orgasmos, paralisias inexplicáveis, etc. a paciente afirmava não ser aquilo – que ela era uma mulher respeitável, ciente de suas obrigações e modos, mas algo tomava conta de sua vontade: “Isso tomou conta de mim, mas eu não tenho nada a ver com isso”.

Freud entende então que há duas funções: o eu o isso. Nesse “eu” (moi) eu me reconheço, porém não sou eu – não encontro nele as tendências desiderativas e fantasmáticas do “isso” (Je). Daí que Lacan enuncia o objetivo ético da psicanálise, ao oferecer uma via de acesso para que o sujeito se reencontre nisso: “lá onde estava isso, devo eu advir”

Aqui será preciso um breve contexto: eu mencionei que a corrente da psicanálise, até onde conheço, que explica melhor a “estrutura da experiência”, era a psicanálise lacaniana. Jaques Lacan foi um psicanalista francês nascido em 1901 (morto em 1981), que faz uma revolução na Psicanálise – a maior, desde a criação de Freud… Para mais informações sobre a vida e trajetória do Lacan há dois vídeos no Programa que postarei também aqui. (O que, de fato nos interessa para o momento são alguns conceitos que tomaremos emprestado pra entender o processo poético).

Lacan tem expressões altamente polêmicas; dizia, por exemplo, que ‘a realidade não existe’. Este aforismo nos interessa muito: ele pressupõe uma constituição radicalmente diferente da ontologia que até então a filosofia e a ciência imaginavam como sendo o “real”. Ele diz que a “experiência existencial” seria melhor entendida a partir de três registros, três dimensões interconectadas: RSI – O Real, o simbólico, e o Imaginário. 

O Real

Comecemos pelo mais difícil… No Cap. VII, do famoso livro A Interpretação dos sonhos (onde o Freud lança as bases da psicanálise em 1901) ele analisa um sonho do qual apenas ouviu falar. Pra Freud e depois para Lacan esse sonho, no entanto, servirá de “modelo” cuja análise constitui parte importante do edifício teórico psicanalítica – mas ambos abordam o sonho de forma significativamente  diferente.

Um pai cujo filho morre após dias de cuidado à cabeceira da cama, no dia do velório, cansado, pede a alguém que vele o corpo do filho enquanto ele descansa no quarto contíguo. Ao dormir, sonha que o filho, em chamas, caminha passo a passo até ele, o sacode e diz “Pai, não vê que estou queimando?”. Nesse momento o pai acorda, corre até onde filho estava sendo velado e curiosamente uma vela havia de fato caído sobre o caixão e incendiava o quarto.

SONJA SURBATOVIC, “Mother”, 2020 | carvão sobre papel, 100cmX100cm

Freud usa esse sonho pra elaborar uma parte importante da sua teoria psicanalítica – embora ele faça uma extensa revisão bibliográfica de tudo o que na história se falou sobre sonhos, ele próprio talvez tenha sido o primeiro a levar realmente a sério o poder e as funções oníricas, retirando o sonho do campo do misticismo religioso ou mesmo de banalidade. Dentre suas muitas considerações a partir do tal sonho, uma delas é que o sonho teria uma função de manter o sonhador dormindo, mascarando os desejos inconscientes, de modo que eles não perturbem o sonhador, e assim o sono se perpetue.

O sonho, para Freud teria função de um “guardião do sono” – as formas fantásticas que assume seriam um disfarce pra que os desejos inconsciente sejam representados, e assim realizados sem que de fato se apresentem ao sonhador no sonho – fato esse que o faria acordar. Simplificando, para Freud, o sonho é uma certa “realização alucinatória do desejo”. Quanto a esse sonho do filho que queima, ele deduz que o pai sonha com o filho para realizar o desejo que teria de que o mesmo estivesse vivo – e assim prolonga o sonho o quanto pode (mantendo o sonhador no sono), até que o estímulo do fogo se faz tão intenso que ele acorda. Essa aliás é a percepção mais comum até hoje, Freud consegue alcançar o imaginário popular e penetrar na cultura de forma impressionante: sua teoria rompeu todas as resistências e acaba sendo amplamente aceita, embora também amplamente distorcida.  De todo mod, Lacan enxergou o sonho sob outro viés, e muda o foco da questão. Ainda em relação ao mesmo sonho, ele faz a pergunta mais óbvia e mais contundente: se o sonho realiza o desejo do sujeito… então, por que ele desperta? Aí é que entra o conceito de Real.

O acordar – o retorno à consciência é a reconstituição em torno de nós de nossas “representações” da realidade – ou seja, de coordenadas simbólicas a partir das quais nosso imaginário constrói uma ficção e projeta nela um sentido de totalidade. É assim que o absurdo da vida passa a ter um sentido mensurável, se mostra “compreensível”: passa a ser suportável. Uma ilustração bastante eficaz são os painéis de câmeras de segurança. Neles, aparecem simultaneamente várias imagens, cada uma projetando a realidade de um andar do edifício. Cada uma possui certa coerência interna; porém, quando vistas em conjunto, esgarçam qualquer possibilidade de coerência intrínseca: o absurdo da totalidade retira assim o sentido de cada uma das imagens.

O Real é o que não podemos ver porque ele não pode se mostrar. O real é que iremos todos morrer, sem hora marcada – a morte virá subitamente, nada a evitará, e quando acontecer não estaremos preparados. Virá e será permanente, imutável, implacável. Mas tem coisa pior: somos absolutamente vulneráveis. Estamos vulnerável, por exemplo, a perder um dos sentido: posso viver condenado a uma cadeira de rodas, ficar paraplégico, tetraplégico… Se nada disso acontecer, sempre há a chance de que eu viva tantos anos que a vida se me torne insuportável, eu provavelmente serei um dia senil, perderei o que sei e o que sou, a memória das habilidades que tinha. Mas pode acontecer algo ainda pior:  podemos descobrir que já vivemos sob uma condição absolutamente precária, uma condição na qual uma infinidade de eventos traumáticos fora tecendo em torno de nós uma espécie de armadura psíquica da qual a gente não consegue se livrar – nem distinguir  qual é o nosso limite e o dela, e que desaprendemos a viver sem essa armadura: essa armadura se chama identidade.

Por que essa condição de absurdo, entretanto, nunca se apresenta? Por que a  catástrofe sempre parece estar distante, e a realidade uma experiência estável, normal? Por que diante de uma existência tão precária a gente ainda sonha encontrar a felicidade? É porque a gente retira da existência um elemento: a gente retira, precisamente o Real. Só assim ela pode parecer estável, apresentar-se como normal, plena de sentido, submetido a leis e sistemas estáveis, etc. Só assim é que o mundo funciona.

VALERIA DUCA, “Dissociation”, 2021 | óleo sobre tela (175×200 cm)

Uma imagem que me faz compreender o Real é o Homem Invisível (uma outra ilustração pra tentar materializar péla metáfora isso que é imaterializável por natureza). O Homem Invisível  tinha um super poder que era desaparecer – então, você não conseguia pegá-lo, a não ser que estivesse munido de um simples lençol: ao ser jogado sobre ele, o lugar onde ele está se revela.

O Real é mais ou menos como essa coisa invisível que a gente não consegue ver, não tem jeito, a gente não vai ver, é impossível – só que se jogamos um tecido sobre ela, ela aparece! A gente consegue capturá-la pelo espaço negativo, dando visibilidade ao vazio que ela faz ocupar. Esse tecido se chama simbólico – o segundo registro que Lacan vai se valer pra tentar compreender a dimensão da experiência existencial.

Outra imagem pra entender o que seria esse “real” lacaniano: imagine-se diante de uma pedra, que, de tão, tão imensa, não se pode com certeza afirma que se trata mesmo de uma pedra. Você toca, sente a textura, a temperatura…. tudo parece dizer que é uma pedra. Mas como não se vê nunca seus limites, aquilo pode ser qualquer coisa, por exemplo um grão de areia na unha de um deus imensurável. O real é um pouco a situação do peixe, que não pode saber que há água por todos os lados a não ser quando é retirado dela. Mas então ele morre. Nessa situação ele perde o poder de conceber que está na água: nós estamos dentro do Real, só que sem nenhuma condição de percebê-lo. Pra Lacan, a aparência de realidade em torno de nós são apenas formas, imagens, manifestações de uma realidade fenomênica que não dão conta de explicar nem de longe o que é, de fato real: pelo contrário, ao tentar dar expressão sensível a esse Real, elas inviabilizam a sua aparição. Não é possível apreender esse real – metaboliza-lo em linguagem pra que ele se torne compreensível; não nos é possível elaborar uma síntese do Real.

Por isso mesmo, ele sempre retorna… Ou, na expressão de Lacan, o Real “é o que não cessa de não se inscrever”. Por que e onde é que ele retorna? Onde ele “não se inscreve”? Justamente nesse tecido usado pra revelá-lo ao mesmo tempo que o esconde: a própria linguagem. É na linguagem que o inconsciente está. O inconsciente não é propriamente uma instância dotada de temporalidade. Não há substância onde ele poderia se manifestar: é no próprio tecido da linguagem que as formas de retorno desse Real vão se deixando entrever – por seu espaço negativo, contudo. Essas formas estão presente o tempo todo entre nós: chamam-se – sonhos, atos falhos, chistes, e principalmente, sintomas (no caso de doenças psicossomáticas).

ZSOLT BODONI, “The place devil lives” (detalhe) | óleo sobre tela

Isso porque somos “seres de linguagem”, diz Lacan, o que equivale dizer que somos seres eternamente DIVIDIDOS, eternamente “barrados”. Essa barra é a linguagem, pois, ao passo que ela permite que o sujeito se reconheça e conheça o mundo, também o atravessa de tal modo que ele perde pra sempre o Real de si mesmo: quando eu sinto algo, quando me penso, certamente sou único – no entanto, no momento em que comunico, perco-me de mim. Se escrevo, o sentimento virou palavra, se desenho, virou linguagem visual, etc.

Essa condição faz com que tenhamos a necessidade constante de expressar – e, de novo, expressamos não o que sentimos, mas as próprias formas da linguagem, onde o eu esbarra. Isso vai fazer com que eu me aproprie da linguagem: ganho um desenho, um poema, uma música, mas perco pra sempre o Real, que fica assim literalmente obliterado pela linguagem, tal como o Homem Invisível aparece, mas sem nunca se revelar. E quanto mais tecido se jogue sobre ele, menos ele dá a entrever sua forma real, porque mais a linguagem vai se interpondo entre nós e ele. Mas, diferente do Homem Invisível, o Real está em todos os lugares ao mesmo tempo e em lugar nenhum. Mesmo assim, a gente não o vê: nossa tarefa seria jogar lençóis em todos os espaços pra tentar dar dimensão visível a ele no lençol da linguagem.

 A simples experiência de falar com alguém quando se está angustiado, e o alívio que isso traz demonstra a catarse que a linguagem opera. Freud cria justamente um método catártico por meio da fala, onde fundamentalmente o alívio se dá na medida da elaboração da angústia em linguagem. A gente não cura a angústia; ela é incurável; mas ao passar por um processo de formulação, de elaboração, logramos manter, em relação àquilo que nos gerava angústia, uma relação “relacional”, simbólica, lúdica: muito mais fácil do que, se não houvesse nenhuma mediação, se nada amortecesse esse encontro entre a gente e o estado traumático da angústia. A linguagem, dando uma costura poética, um contorno de sentido, confere estabilidade, coordenadas a partir das quais conseguimos lidar com a angústia. Quando o Real não tem mediação – nem linguagem, com uma metáfora, ou qualquer outra “representação da realidade” – esta realidade se apresenta como experiência traumática.

É como se em nossos sonhos encontrássemos mais facilmente uma “verdadeira realidade”, e a vigília fosse a gente com um fone de ouvido imaginário.Por isso o pai acorda quando aparece no sonho o filho ardendo em chamas: um lapso do absurdo caótico e bizarro da vida atravessou as barreiras do sonho e se apresentou sem as formas estáveis da normalidade aceitável (mesmo para um sonho). Ele acorda pra fugir do Real. Ante a perda do controle sobre o desejo que se ocultava no inconsciente, ele imediatamente acorda para poder reconstituir as coordenadas sensíveis da experiência costumeira de realidade; para que tudo “entre nos eixos” e volte ao normal.Agora se pode, enfim entender o sonho que o pai teve com o filho em chamas: o real para Lacan é a falta. Algo que falta em nós justamente porque nos humanizamos por meio da linguagem e a linguagem encobre algo. E se o Real é o que falta, o Real é o que se deseja – e desejo é um termo caro à teoria de Lacan. Aqui a gente pode aludir pra explicar esse ponto à etimologia de dessidium, já explicada noutro texto.

Quando o pai, dormindo, ou seja, no instante em que as representações e imagens do mundo organizado, do mundo “normal” da vigília não estão a postos – nesse sonho paradigmático o Real aparece, irrompendo o espaço onírico sem a vestimenta adequada, se apresenta em carne viva, em forma de desejo puro. “O que é que desperta?”, pergunta Lacan. O que o desperta é o Real latente em seu inconsciente, a grande falta que esse pai sente: o remorso por ter deixado o filho morrer.

O simbólico

Mas dissemos serem três estruturas constitutivas disso que a gente chama de realidade. Após o Real, a segunda  é o simbólico. O simbólico nos diz respeito mais diretamente porque ele é o campo onde as representações aparecem – ou seja, as imagens, as palavras, os gestos, a dança, a música = a linguagem. O que não é registrado no simbólico, é como se não existisse: como pensar num evento sem imagem, uma história sem palavras, uma imagem sem formas,  ou a fotografia do nada. No vídeo abaixo discorremos sobre isso:

O registro no simbólico é o que cria de fato a narrativa que permite que vivenciemos os momentos como experiências. É preciso inscrever as vivências em alguma forma de linguagem. A cultura do selfie tem um preço caro – impede que vivenciemos os momentos e acabamos por atribuir às câmeras o papel de registrar os eventos, ao invés de expressá-los de forma mais criativa, onde estejamos de fato implicados. Por isso o mundo é cheio de imagens que circulam por nós sem dizer de nós mesmos – imagens não não foram realmente vividas por isso não tem sentido.

O imaginário

Se o simbólico tem a ver com a arte – no sentido das produções, e manifestações, das expressões artísticas, o imaginário tem a ver com o artista que produz, que se manifesta, que expressa: este é o campo do eu e do engano. O campo do “moi”, do ego e das ilusões e identidade que o constituem.

É exatamente como no filme Matrix; porém com uma diferença que o filósofo Slavoj Zizek apontou muito bem: a escolha entre a pílula azul e vermelha não é, na verdade uma escolha entre ilusão e realidade. A Matrix é uma máquina de construir ilusões, mas nossa realidade já é estruturada por ficções: se você tira da nossa realidade as ficções simbólicas que a regulam, você perde a própria realidade junto. No DOC “Guia perverso do cinema”, o Zizek resume: “eu não quero nem a pílula azul, nem a pílula vermelha: eu quero uma terceira pílula! Uma que me permita perceber – não uma realidade por detrás da ilusão, mas a realidade da própria ilusão!”

Para explicar melhor o imaginário, é preciso falar de outro conceito de Lacan: o Estádio do espelho.

“O estádio do espelho como formador da função do eu” é uma comunicação que Lacan faz em 1949 num Congresso Internacional de Psicanálise em Zurique, e depois reescreve em seu famoso livro Escritos. “Estádio do espelho” é a resposta de Lacan à teoria freudiana da passagem do autoerotismo para amor de objeto.  A imagem de si que o espelho oferecepromoveria a passagem entre esses dois momentos – após o que a libido vem se depositar no próprio “eu”, momento que Freud chamou de narcisismo (quando então a libido do bebê se deposita não mais no corpo, não mais em seus próprios órgãos, tampouco nalgum objeto, mas em seu próprio eu). O mito de Narciso encarna perfeitamente esse momento em que o bebê se enamora da própria imagem. Nesta importante fase da constituição subjetiva, a imagem é uma síntese unificadora fundamental: “Para que haja relação de objeto, é necessário que haja anteriormente relação narcísica do eu e do outro” (LACAN, Seminário 2).

Os desenvolvimentos desse conceito explicam o fundamento da experiência como intrinsecamente ligada à imagem. Para saber mais, sugerimos o artigoA consistência e a insistência: o imaginário e o simbólico no início do ensino de Lacan”.

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Capa: CARLOS RAFAEL GOMEZ MOJICA, carvão sobre papel

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Publicado por Gustavot Diaz

Artista visual e escritor, co-fundador do espaço artístico MÍMESIS | Conexões Artísticas em Curitiba, e ministrante do curso Processos Poéticos. Vive atualmente em Porto Alegre (RS).

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