[PROCESSOS POÉTICOS 4ª ED] “MÓDULO 2”: PRIMEIRA AULA | PROCESSOS DE SUBJETIVAÇÃO E IDENTIFICAÇÃO

No primeiro encontro do Módulo 2, cujo conteúdo ora compartilhamos, preferimos abordar diretamente alguns dos conceitos centrais da psicanálise – será mais útil ter noção do que seja essa área do saber, para então mensurar sua contribuição à arte e a natureza de suas implicações mútuas. Durante as quatro horas do encontro discorremos acerca dos registros Real, simbólico e imaginário, e sobre algumas relações entre as teorias de Lacan e Freud. No segundo encontro falaremos do Estádio do espelho – articulação central na constituição do sujeito, que Lacan faz coincidir com o reconhecimento da dimensão da imagem.

ANNE-CHRISTINE RODA, óleo sobre tela

Em primeiro lugar, é preciso esclarecer que nosso interesse, no fundo se trata de uma “metapsicologia”. O que caracteriza a psicanálise é a análise clínica, sua dimensão terapêutica; recorremos neste curso, no entanto, apenas ao corpo teórico desses autores que pode esclarecer, dentre tantos outros fenômenos, a “estrutura ontológica da experiência. Eixo principal do Módulo 1, a reflexão acerca da experiência do artista enquanto sujeito colocou em pauta as perguntas: quem é esse “eu” que produz? Que sujeito é esse que experienciaem nós e por nós? Como não há sujeito sem experiência, começamos por esta, desde a formação da “subjetividade Moderna” – onde falamos da perspectiva (Terceira aula do Módulo 1). Até o século XV, quando esta foi inventada por Brunelleschi, a subjetividade não era convocada, não se implicava, não era pressuposta, ao menos dentro do campo da representação.

Alain de Libera[1], buscando reconstituir as condições epistemológicas da subjetividade emergente nesse período (humanismo moderno), de antemão a define como autorreflexiva (o sujeito moderno é transparente, ou seja, vê o mundo sem que ele próprio e seu corpo se impliquem nos objetos) e autofundacional ou autônoma (soberano sobre a própria vontade). Embora com reservas, Libera confirma a tese de que

o que define intrinsecamente a modernidade é, sem dúvida, a maneira como o ser humano nela é concebido e afirmado como a fonte de suas representações e de seus ats, como seu fundamento (subjectum, sujeito), ou ainda como seu autor

A. Renault cit in LIBERA, 2013 (pp. 20 a 29)

Disso derivava que a produção de imagens até o surgimento da perspectiva era essencialmente era modular (canônica). A perspectiva permitiu que a experiência do artista fosse introduzida na História e ouvida pela primeira vez – evento já, provavelmente tanto causa como efeito do “sujeito” vindouro, capaz de vivenciar esse tipo de experiência subjetiva.

Porém, a perspectiva não está ligada inteiramente à experiência sensível do artista – ela emula certas coordenadas que funcionam de forma “realista”, depende realmente do ponto de vista do observador, mas é fundamentalmente uma expressão geométrica da busca italiana pela certezze – ou seja, é uma “forma SIMBÓLICA” de representação de tempo e espaço, como nos ensina E. Panofsky em sua obra “A Perspectiva como forma simbólica”, que já tivemos ocasião de comentar aqui. De qualquer modo, ali aparecia pela primeira vez indício do sujeito moderno – o sujeito do Cogito, que Descartes mais tarde enunciaria na filosofia. O cogito, ergo sum cartesiano pressupunha que esse sujeito auto-evidente (cuja validade é dada por ele mesmo quando pensa) e transparente a si mesmo é, por definição, um ser racional: “penso, logo existo”. Essa suposta “verdade” sustentou amplamente a consciência e a subjetividade do sujeito moderno… Mas o eu da psicanálise funciona de uma forma totalmente diferente.

A busca do sujeito moderno pela “verdade objetiva” começa a ser questionada profundamente já no século XVIII, e no XIX, o sujeito recém inventado sofre uma turbulência que altera o “centro de gravidade” que fazia dele um observador desinteressado dos fenômenos; para quem tudo era objeto de pensamento. Um dos principais questionamentos foi a hipótese do inconsciente, criada por Freud. Os contornos da experiência moderna implodem, dando lugar à experiência contemporânea, também chamada de “pós-moderna” no século seguinte (tema do Módulo 3). Para entender esse novo horizonte da experiência, e como ela se reconfigurou, nossa preocupação agora é conceituar a experiência, analisando sua estrutura ontológica: como se constitui, de onde vem e para onde vai, etc. Por isso, o recurso da psicanálise no conteúdo a seguir.

ALICE HERBST, óleo sobre tela

Je X moi

O que efetivamente compõe nossas escolhas profundas, nossas predileções mais autênticas, nosso desejo, é determinado por um “je”que pulsa vivo sob um “moi”. Esse último compõe nossa identidade – aquela com a qual nos apresentamos no mundo; o conjunto das “identificações” com que nos apresentamos ao mundo. O moi é o imaginado, um composto imagético, uma edição de imagens; configura uma ilusão chamada identidade. Je e moi configuram o sujeito – o sujeito da experiência. Lacan muito a propósito se vale da ambiguidade dos pronomes em francês para exemplificar um conceito: o moi é a forma passiva do eu – mais ou menos equivalente ao “mim”). O ‘eu’ ativo é o je: eu sou, eu faço, je suis, je faire. Também é o lugar da enunciação (de onde o sujeito fala, seu lugar discursivo); enquanto o moi é uma função psíquica que o sujeito concebe de si mesmo, oriunda dos processos identificatórios.

Quando me conecto a determinada identidade, passo a ser reconhecido a partir dela: “eu sou artista e escritor”, esse é o meu “moi” – a forma com o qual me apresento no mundo em uma visão coerente, correta, sempre ética: a imagem com que quero ser vistos, enfim, aquela que visto socialmente. Com ela me identifico, e assim quero ser reconhecido. O moi se dá por reconhecimento porque só se conjuga mediante identificações; não expressa nada além da suposta verdade simbólica da imagem: o que me representa para além de mim, o que me identifica, mas que não sou eu.

É conhecido o método da “atenção flutuante” que psicanalista deveria empreender em sua clínica, a fim de não acreditar na história que o analisante dirá no divã. Ele precisa entender precisamente o que não é dito, as incoerências de sua autoimagem perfeita, completa (é mesmo difícil apresentar nossa vulnerabilidade, todo mundo se acredita no fundo como um cidadão de bem). As fissuras nesse discurso irão revelar algo mais profundo: de onde fala aquele que está falando? Esse é o lugar do je, o lugar da enunciação. Esse lugar é mais difícil, uma vez que comete absurdos, age de modo inconfessável e constitui o que a gente sabe da gente para a gente mesma. A distinção pronominal encontrada por Lacan por si só evidencia uma contradição inerente no sujeito entre um enredo que narcisicamente fala de si (versão psicológica que apresenta) e aquilo que ele efetivamente produz desde o seu lugar de enunciação: um “eu” mais próximo do que realmente é, não perpassado de estereótipos simbólicos;

AGOSTINO ARRIVABENE, Cardine di Dio, 2015-2017 | óleo sobre cobre e bulin

Eu X isso

Freud começa sua obra pelo estudo da histeria, em sua época o distúrbio central da sociedade europeia; a psicanálise é sua resposta ao problema. Ele percebeu logo que o fenômenos denunciava uma divisão no sujeito que função do eu não habita de fato a consciência do sujeito. Segundo sua célebre síntese: “o homem não é senhor em sua própria casa”. Essa descoberta desnuda uma séria de realidade, entre as quais é que a consciência é um conceito produzido, tanto quanto a própria subjetividade. Ambas não nascem com o sujeito, mas vão se formando a partir de novas enunciações (processos de subjetivação).

Para Freud e para Lacan, o sujeito aparece como uma disjunção entre a história que ele conta no enunciado e a enunciação que produz. Ou seja: uma clivagem entre aquilo que concebo de mim mesmo – o modo pelo qual me apresento aos outros e busco reconhecimento, e aquilo em mim que me é desconhecido, porém denunciado em lapsos, ato-falhos, sonhos, chistes e, principalmente sintomas. O caso emblemático tratado por Freud é o da Srta. Cecille (Ana von Lieben), que sentia uma dor lancinante na face, sem nenhuma explicação razoável:

“Ela descreveu uma conversa que tivera com ele [seu marido] e uma observação dele que ela sentira como um áspero insulto. De repente, levou a mão à face, soltou um grande grito de dor e exclamou: ‘Foi como uma bofetada no rosto’. Com isso cessaram tanto a dor como o acesso”

FREUD, Estudos sobre a neurose, 1976, v. 2, p. 227

Ele não bateu na esposa; apenas disse algo insultuoso. Freud entendeu o óbvio: o sintoma é uma forma de expressão do corpo, algo que toca e mobiliza o corpo, mas é insustentável no sujeito. O sintoma é uma vazão de uma certa tendência que o sujeito teria, mas não reconhece como sendo sua. Na época diziam que as histéricas sofriam possessões demoníacas – com um pouco de racionalidade, Freud percebe que não era o demônio que tomava as funções motoras das histéricas – era o que elas próprias pensavam. Um sintoma comum da “doença” era a simulação ou encenação de atividades sexuais em público – algo completamente inexplicável na era vitoriana de Viena com sua sociedade burguesa ultraconservadora. Quando questionadas, as mulheres diziam: “eu sou uma mulher responsável e respeitável, ciente de minhas obrigações como mãe de família, etc. mas “isso” toma conta de mim, eu não sou “isso”, não tenho nada a ver com “isso” que se apodera de mim.

Freud entende então que há duas funções no sujeito: um “eu” e o “isso”. Nesse “eu” (moi) eu me reconheço; mas não sou eu, quer dizer, não encontro nele as tendências desiderativas, fantasmáticas que eu realmente desejo. Esse desejo está, na verdade em outro lugar: está no isso (je). Com o “eu” elas se representavam socialmente num papel onde não estavam intimamente implicadas; com o “isso” podiam ser realmente, mas nele elas não se reconheciam. Daí que Lacan mais tarde enunciará que o objetivo ético da psicanálise é oferecer uma via de acesso para que o sujeito se reencontre nisso: “lá onde estava isso, devo eu emergir”.

Na época tal explicação era inaceitável porque acarretava uma hipótese: o inconsciente, ou seja, a cisão do sujeito moderno, transparente, autodeterminado. Não é a toa que o conceito, levantado por Freud em seu livro “A interpretação dos sonhos”, inaugura o século XX: ele coloca em xeque o sujeito cartesiano.

O restante do encontro está registrado em vídeo; parte dele ainda constará no próximo artigo aqui na plataforma.

Capa: ALYSSA MONKS, óleo sobre tela


[1] LIBERA, Alain. Arqueologia do sujeito: nascimento do sujeito. São Paulo, Fap-Unifesp, 2013.

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Publicado por Gustavot Diaz

Artista visual e escritor, co-fundador do espaço artístico MÍMESIS | Conexões Artísticas em Curitiba, e ministrante do curso Processos Poéticos. Vive atualmente em Porto Alegre (RS).

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