Quando penso que vejo, quem olha
por mim enquanto estou pensando?
Fernando Pessoa
Breve nota sobre a crítica
Algo que gerou polêmica em nosso Programa foi a afirmação de que a arte não é sobre o artista. No encontro anterior debatemos sobre os binômios: artista X sociedade e artista X produção; para encerrar o assunto, abordaremos hoje um último binômio implicado nessa conjuntura: obra X público. Numa palavra: a crítica.
Onde estão nossas caravelas?
No último episódio do Podcast DESVER, recebemos o Dr. Diogo Lara – psiquiatra e neurocientista, que explicou o efeito dos psicodélicos na experiência criativa. Com ele pude confirmar uma intuição elaborada ao longo de duas décadas no ensino do Desenho: o olhar é altamente condicionado por “estereótipos”, os quais se interpõem previamente entre nós e os objetos da visão. Isso coloca uma questão alarmante para os criadores de imagens: o olho não serve pra ver; ele funciona como uma “sonda de reconhecimento”, sendo o reconhecimento o elemento mais perigoso da equação.
Um exemplo prático disso: na primeira vez em que se percorre o caminho entre a casa e o novo trabalho, a visão trata de mapear o trajeto. Este, uma vez mapeado e conhecido, não é mais visto: a visão não é ativada mais a fim de poupar a energia que seria despendida em um novo e inútil reconhecimento (quem nunca passou pela experiência de chegar em algum lugar e dar-se conta de que realizou todo o percurso até lá sem olhar o caminho?). O olho como que “suspende” a recepção dos estímulos externos e os substitui por um projeto, um “mapa” já desenhado mentalmente (tal “mapa” é o que chamo de estereotipia).
Sob outros termos, podemos dizer que indícios neurológicos apontam para uma rigidez perceptiva inerente à visão. Todo o funcionamento cognitivo seguirá esse padrão inercial: a visão mapeia um objeto ao se deparar com ele pela primeira vez, e depois substitui novos reconhecimentos pela representação mental. Tal mecanismo economiza energia (25% da energia corporal é concernente ao cérebro), contudo traz o enorme inconveniente de bloquear percepções presentes no mundo ao redor – principal entrave na conquista técnica do desenho. Mais ainda, representa um entrave à percepção em si; significa que herdamos um condicionamento biológico.
O trecho do vídeo a seguir traz uma série antiga que realizamos sobre o Desenho, contendo a encenação do famoso mito das caravelas portuguesas que teriam chegado ao Caribe sem que os indígenas caribenhos as vissem. As caravelas são uma metáfora poderosa para compreendermos a relação entre a visão e a estereotipia:
Para que serve o olhar?
A gente não vê, e nem poderia: olhar é uma ação presente, um ato que se dá no agora; que só acontece no desabrochar de cada instante. E sendo impossível estar integralmente presente, essa impossibilidade compromete a visão. Quem está vendo por nós, se nossa atenção – cada vez mais fragmentária, distraída e disputada – está onde vige o pensamento?
Se o olhar está servindo tão somente para nos guiar pelo espaço dos ambientes; se a função prioritária da visão não tem sido a de informar acerca dos elementos inéditos que eventualmente se interpõem diante de mim; se o olho somente mapeia e reconhece, considerando tudo isso, ele não está me apresentando o mundo como de fato aparece.
Enredada por uma dinâmica filogenética, nossa visão não registra informações realistas sobre o mundo, apenas um mapa incapaz de oferecer experiências reais, e essencialmente diverso delas. (Aí a razão do “método do espelho” usado na arte do retrato há séculos: a imagem invertida ressensibiliza o olhar, estimulando um novo mapeamento). Impõe-se, assim uma missão irredutível ao artista: aprender a ver. Mas “aprender a ver” tem um sentido bastante específico: aprender a desver. E desver é desmontar estereótipos.

Desvendo a Capela Sistina
O principal entrave dos estereótipos à percepção é nos entregar um mundo estático. Enquanto o entorno se transforma ininterruptamente em todas as dimensões, eles nos ofertam um mundo planificado e fixo, que eu chamaria de “geocentrismo perceptivo”. Onde desconstruir essas coordenadas estáticas, esses simulacros do mundo no mundo? Precisamente naquela instância onde a visão deixou de operar, naquele lugar em que o reconhecimento é tão automático, que a estereotipia se evidencia de forma incontestável – esse lugar é o óbvio.
Por essa razão, o questionamento incisivo das imagens do mundo é tão disruptivo. Colocando em questão, inclusive os processos de identificação do próprio artista, bem como as convenções mais expoentes da cultura – aquelas tão óbvias que se tornaram invisíveis – percebemos que, no limite, a matéria do artista é o óbvio. Óbvio é aquilo que ninguém vê… porque é óbvio! Ora, tudo o que ocupa um lugar pressuposto na percepção se torna inevitavelmente um ponto cego dela.

Se num mundo de imagens, perdemos cada vez mais a dimensão estética é porque todo excesso ruma à saturação. Deste modo, o que é excessivo se torna precisamente o seu contrário: uma zona de obviedade invisível.
Nem é preciso dizer que quando tudo é reduzido à dimensão estritamente funcional, o esforço do artista é restaurar o significado interditado pelo óbvio. Faremos uma “demonstração” de como seria um exercício de desvisão, valendo-nos da Capela Sistina de Michelangelo, na versão dos médicos Gilson Barreto e Marcelo Oliveira, que em 2004 apresentaram uma tese questionando as imagens desta que é uma das obras mais vistas e reproduzidas da História:
Acesse AQUI o link para a apresentação debatida em aula!
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Capa: HARRY MCALPINE, “Recommended Content”, 2019 | carvão sobre papel, (760 x 560 mm)
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