[LIVE] “A formação do artista” | COM MARCOS BECCARI

A formação do artista

Nesta Live com Marcos Beccari, falamos acerca de como se deu a constituição do “artista” na Renascença europeia; as condições objetivas e subjetivas de seu aparecimento histórico. Esse conteúdo servirá também como base de nosso primeiro encontro do curso PROCESSOS POÉTICOS, que inicia em 15 de abril.

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TANER CEYLAN em seu atelier (Turquia)

A elaboração poética foi tema do artigo anterior; agora ampliaremos o arco histórico desde o fenômeno do aparecimento do artista, na Europa do quattrocento. Segue a Live, e na sequência uma síntese do conteúdo por extenso:

A formação do artista

Começo corrigindo um equívoco bastante comum, inclusive na Academia – que é o de se pensar o fenômeno da “academia” como uma expressão do século XVIII ou XIX. A noção de academia – oriunda, de fato da Grécia clássica – começou a circular entre os humanistas do século XV na Itália. Com outro sentido, é claro, sua origem entretanto (digamos “ocidental”) começa nesse contexto, designando, ora um lugar de encontro, ora um grupo de intelectuais ou um sistema filosófico, como a gente vai ver mais adiante. O curioso é que essas primeiras academias do quattrocento tinham uma ideia bastante livre do saber, e uma atitude bastante informal frente ao conhecimento; sua flexibilidade e ideias arejadas na compreensão dos eventos contemporâneos a tornou revolucionária, em certa medida, em comparação com o ensino dado nas universidades da época, as quais também já existiam, então com uma orientação marcadamente escolástica.

Esse primeiro momento foi uma época áurea das academias; outrossim, menos de um século depois (no cinquecento), acontece um evento brutal na Europa: o surgimento de tendências e forças regressivas na sociedade europeia dá origem à maior cisma da cristandade – a “Contrarreforma” católica. Essa fragmentação “espiritual” exprimia-se numa fragmentação da cultura – e por isso mesmo, já no século XVI as academias recém surgidas perderiam a informalidade inicial e a liberdade de formulação do pensamento. Numa palavra: a academia logo perde vitalidade; engessando as formas do saber, acabou por assemelhar-se às universidades escolásticas da Idade Média.

O que interessa é que, já na Alta Renascença (por volta de 1500), as academias não só existiam, mas sua orbitava em torno de um princípio comum: o conceito de unidade (vista claramente na obra de Leonardo, Rafael Sanzio, Michelângelo, Corregio, etc). Quando tal unidade se perde, na metade desse século (é o XVI), entramos no século do Maneirismo.

O autor Nikolas Pevsner – de quem tomamos emprestadas várias das informações deste texto (vide bibliografia), descreve o momento histórico assim: “quando o Maneirismo derrotou e aniquilou o Renascimento” . Isso é interessante, sem deixar de ser assustador, pois reflete a dinâmica antagônica das “escolas” ou “estilos de época” – cada um nasce às custas da supressão do outro; não há conciliação histórica (pelo menos não em escolas consecutivas). Ora, se os artistas de um período lutam com seus sucessores é porque têm claro os princípios de sua própria escola – e isso nos ensina algo sobre nossa atividade. Uma vez que os movimentos se sucederam no interior da arte e isso constitui o que costumamos chamar “História da Arte”, esta última é, portanto a história da dinâmica transformativa: não há estilo “certo” de arte – há aquele engajado em determinado tempo, seja no seu, ou em outro.

Retomando… As academias registradas entre 1530 e 1565 na Europa já vestiam uma roupagem Maneirista; estilo com imensa formalidade, regras e protocolos – sinal costumeiro de que o conhecimento já fora de novo sufocado. Num contexto de lutas religiosas, não poderia ser diferente. No medieval século XI, a universidade já existia (a Academia de Bologna foi criada no ano 1088), contudo um sistema de ensino rigoroso e inexato abriu espaço às primeiras Academias, evento não por acaso coincidente com os ideias humanistas, sofisticados e atualizados, que propulsionaram a Renascença. Eis, resumidamente, o terreno que o artista em formação encontrava. Do outro lado, estavam as guildas medievais.

Primeiro que, não podia ter sido outro, senão Leonardo da Vinci quem primeiro associa a ideia de “academia” à ideia de “arte” (proposição de Seidlitz, in PEVSNER, 2005, p. 93). Da Vinci sempre trabalhou com um programa: sua imensa ambição era levar a pintura (na época pensada apenas como exercício de habilidade manual) a um estatuto de “ciência” – projeto que expressava com todas as letras em seu tratado Libro dela Pittura. Nele, Da Vinci apresenta seu objetivo de “revelar o princípio da ciência da pintura” (idem, pp. 93 e 94); daí provém a famosa frase davinciana “a pintura é uma coisa mental”.

ROY NACHUN

Paragone

O profundo sentido das palavras de Da Vinci sintetiza a definição de artista daquele período. Claro que uma definição profissional deriva de sua relação com a estrutura social. A definição e, portanto a formação do artista depende de sua inserção nessa estrutura. O que Da Vinci fazia era justamente tensionar o lugar do artista na estrutura.

Na realidade, outro florentino foi o verdadeiro protagonista desse tensionamento; quem mais contribuiu no establishment do artista neste sentido, conferindo-lhe respeito, direitos – sobretudo, prestígio, pra além de um mero artesão e oficial de guilda – foi Michelangelo Buonarroti. Michelangelo também defendia – exatamente como Da Vinci, o status da arte em relação à artesania medieval das oficinas: ele diz, por exemplo que o artista “pinta com o cérebro, não com as mãos”. O caso é que, enquanto os escritos do Leonardo foram quase todos confiscados pela igreja Católica quando de sua morte em 1519 (o próprio Tratado da Pintura só foi impresso no século XVII, circulando por mais de um século copiado manualmente entre poucos acadêmicos discípulos), Michelangelo, que só escreveu poesia, angariou no entanto com suas produções plásticas uma fama e um sucesso que impressionou papas. Por conta dele, Paulo II dá a chancela final que mudava o estatuto do artista no interior da sociedade; num edito de 1540, garantia que “estatuários, como homens de estudo e de ciência, imitadores das coisas da natureza, e realizadores de efígies fossem isentados para sempre e irrestritamente da jurisdição dos escultores ou artífices do mármore” (idem, p. 96). Era a “carta branca” para que os artistas saíssem de uma vez por todas da posição de artesãos, o que retirava definitivamente o artista do sistema de Guildas.

A questão do Paragone dá ideia de como o artista se definia no período. Essa gigantesca polêmica que atravessou séculos entre artistas, historiadores e connoisseurs, tratava-se de uma disputa pra ver qual categoria era superior às demais – se a pintura, a escultura, a música, a poesia, etc.

Claro que Da Vinci foi o primeiro a enunciar a questão… Em seu tratado, defendia a supremacia da pintura em relação à escultura, usando um argumento teórico e outro prático, digamos assim. O prático é fácil de entender: ele acreditava que o trabalho do pintor era mais limpo, organizado e intelectual; já o do escultor era sujo, caótico e submetido ao trabalho braçal da artesania. O argumento teórico é que coloca uma questão que vai mexer com a vida cultural como um todo: ele acreditava que a “ilusão” criada pela pintura era mais instigante que a operada na escultura – porque a escultura imita “servilmente” as formas da natureza.

 “A pintura impele a mente do pintor a se transmutar na própria mente da natureza e a se fazer o intérprete entre a natureza e a arte, explicando em nome da natureza as causas dos fenômenos naturais regidos por suas leis – como as aparências dos objetos próximos ao olho convergem para a pupila imagens verdadeiras; as quais entre objetos de igual dimensão parecem maiores aos olhos; os quais entre cores idênticas parecem mais ou menos escuros ou mais ou menos brilhantes; os quais entre objetos colocados à mesma altura parecem mais ou menos altos; porque, de dois objetos colocados em distâncias diferentes [do olho], um se vê melhor que outro.” (LEONARDO DA VINCI, apud Baxandall, 1991, p. 195)

Leonardo sugeria que a escultura, imitando ipsis litteris a forma dos modelos, estava dispensada de criar a solução plástica de representação – coisa que apenas a pintura seria capaz, ao sintetizar os planos e volumes inexistentes no quadro bidimensional do suporte. Mas no fundo, o que Da Vinci defendia era a supremacia do “olho” em relação aos outros órgãos sensoriais – a visão seria “mais eficiente” do que o tato ou qualquer outro sentido porque “os olhos dão acesso à alma”. (Como contraponto, faço menção à obra teórica do arquiteto contemporâneo Juhani Palaasma, dedicada precisamente a questionar essa concepção).

Da Vinci e Michelangelo não estavam somente tentando inserir as artes visuais no rol das ciências, mas – especialmente o Leonardo – miravam a dignidade filosófica do ato de pintar e esculpir, retirando essas atividades do âmbito de um pragmatismo tecnicista.

Nessa mesma onda, já em 1547, um poeta influente chamado Benedetto Varchi, inspirado nas ideias davincianas, defendia abertamente que as ideias e conceitos eram superiores à prática material. A disputa do Paragone dá conta de pelo menos três séculos de discussões na arte – e é ainda hoje uma pauta nunca devidamente equacionada (vide que a Arte Conceitual “reeditou” essa rivalidade na década de 60 do século passado).

GRZEGORZ GWIAZDA

Filippo Brunelleschi e a invenção da invenção

Esses são alguns traços com que tentei caracterizar como se deu a constituição do ofício artístico na Renascença. Pra ilustrar isso tudo, a melhor forma é falar das obras de Filippo Brunelleschi, mais especificamente de duas delas. A primeiro nos informa sobre a formação do artista, propriamente, e a outra dá uma percepção exata do significado de “arte” que nascia naquele período, cujas bases estabelecem até hoje a enunciação do nosso fazer.

Comecemos com o “Duomo de Florença”, ou Catedral Santa Maria del Fiori, talvez a construção arquitetônica mais espetacular do Quattroccento. Iniciada no século XIII em estilo gótico (ou bizantino medieval), passou pelas mãos de Giotto no século XIV, no século XV teve sua monumental cúpula erigida por Brunelleschi, e a lanterna, décadas depois, concluída por Michelangelo: esta igreja é o epítome de todas gerações renascentistas.

A cúpula foi concluída em 1436; consumiu 4 milhões de tijolos e foi integralmente realizada em apenas 16 anos, crescendo na proporção de 30cm por mês – um feito extraordinário (note-se que o restante da Catedral demorou 140 anos para ser construída). Tem 45 metros de diâmetro, que é o tamanho do tambour (base do domo), e 100 metros de altura. Até hoje, continua sendo a maior cúpula de alvenaria do mundo. Ela é, de fato, uma operação tecnológica que demandou o desenvolvimento de inúmeras tecnologias – processos construtivos e projetuais, perspectiva, técnicas de alvenaria, engenharia de guindastes, elevadores, etc. O vídeo que segue dá conta dos principais detalhes do projeto, assim como o livro de Paul Robert Walker, A Disputa que mudou a Renascença, que estará em nosso bibliografia.

O experimento da experiência

Outra conquista de Brunelleschi é o experimento para testar os princípios da “perspectiva” – sendo boa parte desta uma invenção sua… (o desenvolvimento/ pode ser conferido na Live). Esse extraordinário sujeito da primeira geração de renascentistas representa o nascimento da profissão de arquiteto –durante anos trabalhou com projetos, coisa impensável até então justamente porque os capomaestros não dispunham do sistema de perspectiva pra elaborar desenhos; porém, mais do representar o surgimento de uma profissão, Brunelleschi representa um novo sujeito social.

Um exemplo bastante significativo disso é um pagamento que recebeu em 1417 da comissão responsável pelo Duomo) “por seus trabalhos com projetos e pelos esforços que fez para a grande cúpula”. (WALKER, p. 146) No recibo oficial deste pagamento, escrito em latim no original, Brunelleschi é definido como aurifici – ourives; na versão italiana, contudo é identificado só com seu nome próprio: Filippo Brunelleschi. Tal omissão significa que, se a comissão da Cúpula era obrigada a referir no recibo original a categoria profissional de quem contratava, na duplicata em italiano não foi capaz de mencionar o limitante ofício de ourives porque considerava Brunelleschi “uma entidade, dono de talentos que não se encaixavam bem no sistema de guildas. (idem, p. 147)”

O restante do conteúdo será ministrado no curso Processos Poéticos. Lembramos que as inscrições estão abertas até dia 15 de Abril de 2023, quando então começará sua 5ª edição! Informações no site processospoeticos.com.

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Bibliografia sugerida:

GAYFORD, Martin. Michelangelo: uma vida épica. São Paulo: Cosac Naify, 2015.
PEVSNER, Nikolaus. Academias de Arte: passado e presente. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.
WALKER, P. R. A Disputa que mudou a Renascença. Rio de Janeiro: Record, 2005
DOLINER, R. & BLECH, B. Os Segredos da Capela Sistina, Casa das Letras, 2009.
BARRETO, G; OLIVEIRA, M. A Arte Secreta de Michelangelo. São Paulo, ARX, 2004.

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Capa: IVÁN FRANCO, 2020, óleo sobre tela (30 x 30 cm)

@ivanfranco

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Publicado por Gustavot Diaz

Artista visual e escritor, co-fundador do espaço artístico MÍMESIS | Conexões Artísticas em Curitiba, e ministrante do curso Processos Poéticos. Vive atualmente em Porto Alegre (RS).

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