Última semana para visitação da exposição Olhar Submerso, de MARCOS BECCARI, em exibição da Fundação Cultura de Curitiba. No post, segue nosso texto de curadoria…

“Representar” água com água gera um curto-circuito no conceito de representação. Aproximar-se da obra do pintor MARCOS BECCARI exige esta consideração: não estará ali, mascarada no “representar”, a própria coisa, fingindo figurar-se? Não é água de fato o que se vê em suas aquarelas? É equivocado dizer que parecem fotografias. Tampouco “representam” rio, pedra, modelo, paisagem. Jean Baudrillard, filósofo caro ao pintor, explica: “Criar uma imagem consiste em ir retirando do objeto todas as suas dimensões, uma a uma: o peso, o relevo, o perfume, a profundidade, o tempo, a continuidade e, é claro, o sentido”.
A aquarela denuncia, mais que outras categorias, seus procedimentos técnicos: a ilusão nunca é completa. Diferente do óleo, que pode esconder suas operações (ou da fotografia que, bom lembrar, é apenas outra linguagem) por mais “realista” que seja a aquarela não faz mais do que mostrar, a todo momento, suas etapas construtivas. Desveja a figura e olhe precisamente o que o pintor oferece, o que a tinta entrega, e encontrarás manchas – algumas fluidas, outras de borda dura, colocadas nos lugares certos. Certos? Mas não será o olhar do observador quem introduz a figura e faz o rio aparecer, sendo justamente o recuo do pintor que põe essas águas em movimento?

A suspensão voluntária da crítica ante a imagem é um estado de vulnerabilidade. O observador nunca sai ileso: se põe ali, aliás, para ser iludido. A leitura de Sobre-posições (livro em que Beccari reúne sua produção e enuncia para ela uma chave de leitura) onde suas aquarelas acompanham o texto do início ao fim, me causou uma emoção genuína: entendi que, independente da escrita e de seu sentido, a afecção forte ali era a estética. Seu livro ilustra a própria tese: o que está para além do papel não é importante… É precisamente nessa irredutibilidade entre função e forma que a arte relativiza o valor da utilidade e do pragmatismo do consumo que submete práticas e saberes.
Talvez Beccari não esteja preocupado com o assunto; os títulos sem grande relação com as imagens evidenciam que há outra coisa em jogo. Sobrenadantes no papel não são jovens a flutuar na água: é a própria imagem, oculta na aquarela, o seu grande tema (ao modo dos pigmentos boiando no aglutinante). Imagem que “insinua”, escreve o próprio Beccari – no olhar quando este articula os efeitos imprevisíveis da água, transformando-os em forma. Não parece fotografia porque a refração da água altera inevitavelmente a forma; forma que, no entanto, a transparência da mesma água revela. À fotografia não importa fazer sentido no mundo aqui fora: é dentro da película, na lógica que ela mesma forja, que reside o interesse. Imagens são edições de nossa experiência; não se parecem fotografias (a comparação as colocaria numa linha de equivalências injusta onde o mérito de uma linguagem é copiar outra), tampouco se parecem “realidade”. São precisamente o que mostram: aquarelas.

Não é à toa também o atravessamento da retratística na produção de Beccari. Inúmeros retratos a dizer-nos a mesma coisa – não estou aqui “representando” alguém fora do papel, nem qualquer referente externo; represento a pintura em si e as tensões que a dinâmica da linguagem visual faz emergir como figura. Em nenhum momento a miragem quer ocultar que o seja.
Uma imagem deflagra, por fim, como somos frágeis, suscetíveis por nos deixar enredar na prestidigitação que torna pigmento em ser; quando o esforço do artista vai todo em sentido contrário (o de tornar ser em pigmento). É claro o sentido da mítica disputa entre Zêuxis e Parrásio: a tela vencedora não “representa” nada; apenas figura a ilusão. A ilusão apenas evoca, insinua, enfim a “coisa real” – como uma música que não nos sai da cabeça: aparece fragmentada, distante, porém não deixa de estar absolutamente presente.
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Gustavot Diaz
novembro de 2021
