[PROCESSOS POÉTICOS] QUINTA AULA | O ato poético

Falamos de um Je e de um moi; agora é a vez das noções de Eu ideal e Ideal de Eu. Ambas figuras desenvolvidas por Freud, e fundamentais ao ato poético no tocante ao sujeito que o experiencia e à dimensão conceitual (o quê fazer), são essas posições do sujeito instituídas em função da imagem.

GUSTAVOT DIAS, “Selfie portrait”, 2018 | carvão e pastel sobre Mi-Teintes (66x50cm)

Eu ideal x Ideal do Eu

O Eu ideal corresponde a uma forma do Narcisismo – um lugar ajustado ao desejo e à expectativa dos pais e da sociedade; em outros termos, àquilo tudo que o “outro espera de nós”. No Eu Ideal – instância imaginária onde a divisão que existe entre o que eu “sinto ser” e a “imagem do que sou” desaparece, e onde nos identificamos completamente com as projeções alheias, respondendo ao que o outro espera – somos objeto que satisfaz a expectativa de alguém (função à qual recorremos na esperança de agradar e fazer cessar a angústia). Já o Ideal do eu (instância do Complexo de Édipo) corresponde a uma superação simbólica do narcisismo primário do Eu ideal – quando já a criança percebe que não é amada pelo que é em si mesma, mas por algum outro valor independente de si.  O Ideal do eu representa aquilo que se deseja no desejo; remete ao que se deve “querer tornar-se”. Ou seja: a busca de um ideal que autorize meu próprio desejo. Sua enunciação se daria através de perguntas como – o que serei e como devo ser? em que lugar subjetivo devo estar? que faço a fim de poder desejar aquilo com que me identifico? Aqui é onde o desejado passa a ser desejante. O Ideal do eu permite a substituição das projeções sobre nossas figuras parentais – de seres superiores e onipotentes, tornam-se então humanos como os demais, e o campo de desejo é substituído por outras instâncias que os representam: professores, mestres, sujeitos sociais que admiramos, etc. A partir dele montamos os ideais reguladores de nosso horizonte ético. Ele permanecerá, no entanto, sempre no futuro do pretérito, indicando um caminho que não será jamais alcançado.

A tendência neurótica é tentar fazer com que o Ideal do eu se satisfaça com o Eu Ideal, se rebaixe a este, na tentativa de suspender a distância entre ambos. Essa tendência resulta na formação de montagens narcísicas (bem características de processos de identificação de movimentos de massa e do funcionamento de grupo, como o fascismo, por exemplo). Apesar de necessário, contudo, os Ideais do Eu são na maioria das vezes incongruentes com o desejo e as potencialidades do sujeito; neste caso, o desafio maior passa a ser a destituição de seus próprios valores. Quando o sujeito faz da instância ideal (construída “socialmente”, não por ele) um “real”, quando abstrai sua natureza ideativa, simbólica, e o toma como uma verdade a que deva responder, será ele fadado a estar sempre aquém de si mesmo. Como o conhecido poema de Pessoa tematiza:

Que sei eu do que serei, eu que não sei o que sou?

Ser o que penso? Mas penso ser tanta coisa!

E há tantos que pensam ser a mesma coisa que não pode haver tantos!

Génio? Neste momento

Cem mil cérebros se concebem em sonho génios como eu,

E a história não marcará, quem sabe?, nem um

(…)

Tenho sonhado mais que o que Napoleão fez.

Tenho apertado ao peito hipotético mais humanidades do que Cristo,

Tenho feito filosofias em segredo que nenhum Kant escreveu.

Mas sou, e talvez serei sempre, o da mansarda,

(…)

Fiz de mim o que não soube,

E o que podia fazer de mim não o fiz.

O dominó que vesti era errado.

Conheceram-me logo por quem não era e não desmenti, e perdi-me.

Quando quis tirar a máscara,

Estava pegada à cara.

Quando a tirei e me vi ao espelho,

Já tinha envelhecido.

ALVARO DE CAMPOS, “Tabacaria”

Identificações sem identidade

É sumamente importante ao artista considerar que a construção da identidade é um processo de alienação. Ela se dá a partir de uma herança da qual é quase impossível se descolar: somos criados para defender o espólio de nossa construção cultural como um patrimônio civilizacional e respondemos a ele tal como a uma dívida simbólica. Por aparecer sempre como o “mais adequado”, aquilo que é “esperado” na circunscrição da lógica formal uma vez que já se encontra instalado na linguagem – essa gramática (no fundo, uma “gramática de afetos”), a dinâmica da identidade está naturalizada. Aprendemos a preservá-la a fim de que não se rompa; caso em que “algo terrível pode acontecer”: se a ordenação significante do mundo descarrila, o imaginário dos sujeitos se desmembra. Para se descolar seria preciso se deslocar, mudar o lugar subjetivo de onde vemos e damos significado às coisas. Esse deslocamento é normalmente doloroso, pois é através desta gramática que o imaginário recompõe o sujeito e dá consistência às coisas e eventos da realidade de modo a torná-los compreensíveis numa totalidade integrada de sentido. Tais processos imaginários dão organicidade ao corpo social e histórico; fazem com que qualquer tentativa de emancipação esteja submetida a uma experiência de destituição daquilo que nos é próprio, e implique reconfigurar o campo da experiência.

As “cadeias de significantes” das identidades, inclusive colocam em funcionamento o sistema de circulação de objetos, introduzindo o desejo na esteira do consumo – que assim se transforma num matadouro condicionante e conducente. A estratégia oferecida pela arte é expor e romper o engate entre a coisa e sua representação, o “certo (enquanto regime de padrões normativos) e o “errado” (enquanto processo emancipatório), entre o dogma e a hipótese. Nisso há um encontro interessante com a Psicanálise, a qual foca justamente nas dissociações identitárias tendo, em comum com a arte, o objetivo de emancipar o sujeito, digamos assim, da própria identidade que o sujeita.

GUSTAVOT DIAZ “Condições para investigação do olhar”, 2020 | carvão sobre M-Teintes (65x50cm)

Freud[1] entende que as dinâmicas de identificação são narcísicas e também possuem uma dimensão política: são elas que consolidam as formas do autoritarismo. Quando o supereu de uma coletividade identificada com os mesmos valores é encarnado na figura de um líder (normalmente enraizado nas instituições normalizantes da igreja ou das forças armadas), pode estar aí a base para o fascismo.

Chegamos, enfim, ao que interessa: reconhecer na arte a função de expor o nexo das conexões identificatórias. Embora compulsórias ao ser, estas perpassam necessariamente o outro, posto que é ele quem nos constitui. Evidenciar (e sobretudo transgredir) a lógica de identificações é o caminho para uma produção poética potente. Aqui é importante considerar que a identificação com as “maiorias” (aqui no sentido estético) certamente não é o melhor caminho à produção poética: limita a expressão individual nas mais variadas dimensões da vida, desde o vestir-se, relacionar-se com o seu e com o corpo alheios, optar por ideários, estilos de vida, profissões, etc. A criação poética é a própria expressão de autonomia em relação à identificação. Como o escritor Gonçalo M. Tavares dirá:

Se olho para onde todos olham, não sou escritor; se encosto o ouvido onde todos estão a encostar o ouvido, não sou escritor. [escrever] tem a ver com mudar o ponto de vista, olhar para qualquer outro sítio, ouvir o que outros não ouvem (…) Se tenho um ponto de vista diferente, se ouço e dou atenção a coisas diferentes, naturalmente vou escrever algo diferente da maioria das pessoas.

Programa “Sempre um papo” realizado pelo SESC Vila Mariana | 2013

GUSTAVOT DIAZ “Condições para investigação do olhar II”, 2021 | carvão sobre M-Teintes (65x50cm)

Processo de identificação x Poética

No mundo moderno – baseado em ideais de ordem e assertividade, a realidade se manifesta de modo prospectivo (aspecto presente desde o sujeito cartesiano). Como uma partitura de posições ideológicas, esse establishment encontra garantia no mundo contemporâneo, uma vez que serve de estrutura ao capital. E por isso mesmo, tal lógica assertiva e ordenadora – portanto unívoca do mundo, não permite variações possíveis (vale lembrar que o capitalismo não é totalitário, porém é absolutista). Qualquer discurso dissonante passa a ser não uma outra interpretação, mas um perigo potencial que ameaça desagregar “a ordem” do mundo como um todo.

Os perfis de rede sociais, por exemplo, mais do que apresentar objetos de desejo, ensinam como desejar; ao socializar os mesmos desejos e circuitos de afetos acabam por gerar batalhões de sujeitos padronizados. A pose com a taça na piscina, as atitudes imitativas, a pose física mesmo que se repete ad infinitum nas fotos: processos de identificação cuja crítica é muitas vezes inaceitável ao sujeito, pois está imbricado numa fusão entre o Eu ideal e Ideal de eu – o sujeito acha que é aquilo que imita sem perceber, e confunde-se no que está identificado. Supõe que suas predileções são processos “de essência”, processos íntimos oriundos de dentro pra fora – quando, na verdade são produto de alienação e vêm de fora para dentro. Quando a identificação é muito forte, o sujeito se confunde com a coisa identificada, e sente como insulto pessoal qualquer crítica ao referente de identificação. Processos totalitários, autoritários, etc. dependem de ampla aceitação popular: são sempre oriundos de uma massa identificada com os mesmos padrões morais – nazismo, fascismo, bolsonarismo, etc.

Essa circunscrição, essa colagem do Eu ideal ao Ideal de Eu constrange absolutamente a expressão do individual, ou seja justamente daquilo que não é o outro, daquilo que diz do próprio “eu”. Efetivamente, é impossível vislumbrar toda a inteireza de nosso ser na subjetividade porque o sujeito é justamente aquela máscara que, quando arrancada, dá a ver outra máscara, e mais outra… até o nada. Poderíamos reconhecer que o destino ético e poético do ser é encarar-se no espelho para além das identificações – para além da própria imagem, assumindo que aquilo que lhe constitui é também o alheio, estranho, não pertencente a si mesmo, logo não define a experiência subjetiva de forma absoluta. O problema não é estar identificado com algo – parte essencial da experiência subjetiva se dá por meio da percepção, fundamentalmente identificativa, associativa, especular e movida por re-conhecimentos (parte que conhecemos pelo nome de “sujeito”): o problema é estar identificado com o próprio processo de identificação. Quando a subjetividade e sua ampla rede de conexões com o mundo é reduzida apenas à função “sujeito” e este se fixa à “identidade”, oblitera-se as condições de emergência do desejo.

As identificações são essencialmente limitantes. Há limites que nos impomos, aos quais não nos dispomos ultrapassar: esses são precisamente os limites das identificações. Posto que estanques, identificações são estereótipos dos quais ninguém está disposto a abrir mão facilmente; o que nos coloca em permanente descompasso com o tempo: vivemos o tempo do gender fluid, do amor líquido, de esculturas imateriais… E no enanto nos aferramos à rigidez de uma identidade. Há uma frase constate em perfis de app’s de relacionamento: “o que me define me limita” (muleta justamente para substituir de forma pretensamente elegante a incapacidade de se descrever, tarefa nem sempre fácil), que carrega uma grande verdade: o que me define me limita sim, porém, sem limites e definições eu fico solto; necessito de um contorno. É isso que o Estádio do espelho faz: oferece no “ideal do Eu” uma imagem conformativa de reconhecimento por meio de uma circunscrição, de um terreno simbólico do qual “fazemos parte” – ou seja, somos partículas, não totalidade. O sujeito é totalidade dentro de seu eu apenas imaginariamente, quer dizer, apenas para além do simbólico, precisamente para além daquilo que o define.

Nossa educação é baseada na conformação à igualdade – lema que ouvimos desde criança: “fulano só faz isso pra se aparecer, porque quer ser diferente”. Esta recriminação ouvimos já na fala das crianças (certamente aprenderam com os pais). Por isso se diz que o artista é a “antena da raça’ (Ezra Pound), ou que está à frente de seu tempo. Mas ele não está à frente do tempo, apenas se dissocia de identificações presentes, criando assim representações de futuras identificações, ainda não possíveis na cultura atual. Ao “pular a cerca” dos processos identificatórios, o artista promove um esgarçamento da sintaxe expressiva, alargando as possibilidades de expressão. Aquilo outrora excluído, passa a ser lei; o artista sai, então da identificação e retorna à ela – deixando a uma próxima geração a tarefa de ampliar o cerco, e assim sucessivamente. Em outros termos, a arte cria o órgão para funções emergentes.

Palavras que falam sem dizer

A questão do artista encontrar-se no que resta para além do processo identificacional; desnudar-se, desvestir-se das imagens prosaicas do simbólico que nos definem justo na medida em que desconsideram o que nos é próprio. Trata-se, no fundo, de implicar o desejo em tal processo. Embora a função sujeito proteja e dê reconhecimento, ela também instala a subjetividade no regime fálico, narcísico de poder.

GUSTAVOT DIAZ “Espelho, espelho meu”, 2016 | pastel e carvão sobre Fabriano (50x70cm)

Não é estranha a dificuldade de auto-descobrimento? Se estou dentro de mim mesmo, por que é tão difícil enxergar? A “cobertura” aí é a composição de identificações que se confundem comigo – nas quais estou de fato implicado, mas que não são eu. Por esse motivo, não sei quem realmente sou: estamos tão travestidos de dados alheios, tão identificados a referentes da cultura, que já não sabemos claramente ser. Por isso o artista começa sua trajetória, por assim dizer, “encontrado”, sabendo previamente aonde quer chegar; portanto, inicia em engano. No meio da jornada, vai se perdendo, se perdendo de si mesmo… No caminho surgem bifurcações, dúvidas, dilemas, até que ele percebe encontrar-se precisamente no lugar certo: a inquietação do desencontro. Esse paradoxo também se expressa no interior do próprio trabalho artístico: quando o artista chega no traço de identidade que o distingue (sua linguagem ou “estilo”), a função passa a ser desconstruí-lo; do contrário, estará refém, condenado a copiar a si mesmo. Uma anedota citada por Amit Goswami em seu livro “O Universo autoconsciente” pode exemplificar essa condição ambígua:

Era uma vez um cossaco que via um rabi cruzando quase todos os dias a praça da cidade, mais ou menos na mesma hora. Certo dia, ele perguntou, curioso:

– Para onde o senhor está indo, rabi?

– Não sei com certeza… – respondeu o rabi

– O senhor passa por aqui todos os dias, a esta hora. Certamente sabe para onde está indo!

Quando o rabi insistiu em que não sabia, o cossaco irritou-se e, em seguida, desconfiado, prendeu-o, levando-o para a cadeia. Exatamente no momento em que trancava a cela, o rabi voltou-se para ele e disse, suavemente:

– Como o senhor vê, eu não sabia…

Essa é a mensagem da mecânica quântica, diz Goswami, descrevendo a dualidade onda-partícula na qual “a interrupção cria novas possibilidades”. Um dos enigmas da Física Quântica é o fato de os elétrons dos átomos poderem aparecer ora enquanto partícula, ora enquanto onda. Heisenberg, o famoso físico, compreendeu que “a trajetória do elétron só aparece quando o observamos” – o que equivale dizer que observar o fenômeno altera o fenômeno. Assim, para resolver essa descontinuidade no comportamento da matéria, foi preciso incluir nos cálculos o ato de observar. Esse princípio da Física Quântica ilustra com precisão o que seria a posição ideal do artista: abrir-se para o mundo, permitindo que seus diagramas de força o habitem, e ele neles. A interrupção em seu trajeto – quer dizer, o outro virá, mais cedo ou mais tarde. E quando vier, será fundamental para alterar o trajeto inicial.

Ao artista, não cabe transmitir nenhuma mensagem; isso é feito melhor por carteiros e fundamentalistas. Ao artista, a melhor opção é o “I would prefer not to“, do personagem Bartleby, ao qual o Quadrado branco sobre fundo branco do Suprematismo de Malevitch, ou na Sinfonia 4’33’’ de silêncio, de John Cage poderiam servir como exemplos perfeitos. Intimamente vinculados, esses últimos experimentos simbolizam um recuo do artista para dar voz ao público. Toda obra é uma “muda evidência”, diz Nicola Samori – um trampolim para que o público se atire. Cabe ao artista apenas encorajá-lo.


[1] FREUD, S. Psicologia das massas e análise do ego. Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. v. 18. Rio de Janeiro: Imago, 1990, p. 89-179.


Capa: GUSTAVOT DIAZ, “Rainha dos Ratos”, 2020 | carvão e pastel sobre Mi-Teintes (50x65cm)

Este texto é parte do conteúdo do CURSO Processos Poéticos – cuja primeira edição acontece em Maio e Junho de 2021. Inscrições para a fila de espera para a segunda edição podem ser feitas pelo email gustaveaux@gmail.com.

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Publicado por Gustavot Diaz

Artista visual e escritor, co-fundador do espaço artístico MÍMESIS | Conexões Artísticas em Curitiba, e ministrante do curso Processos Poéticos. Vive atualmente em Porto Alegre (RS).

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