Sociedades que atravessam medos endêmicos, invariavelmente apresentam sintomas. Qual será o sintoma do nosso medo, do mal provisório que infesta os ares inaugurais do século XXI, na esteira de uma crise social estrutural? Penso se este não será, talvez o voyeurismo – uma espécie de “perversão escópica” que nos tornou cegos para outros sentidos, e cada vez mais avaliza a visão como detentora dos poderes de conhecimento, crença e validação.

Falo de como a função da imagem está inflacionada. E falar em imagem, claro, é falar de figuração. A Arte Contemporânea – conhecida já por sua tradicional enigmática, criticada por seu hermetismo, tem como causa de sua ininteligibilidade justamente a extinção da imagem figural em prol de procedimentos conceituais. Mais do que isso, a Arte Contemporânea desabilita a própria natureza da “representatividade”.
Entretanto, a “representação” cresce socialmente; aumenta seu valor na economia dos signos que orientam quase que a totalidade da experiência contemporânea: filmes, séries, plataformas de streaming (parte indissociável hoje da vida de milhões), redes sociais (na verdade, redes de permuta de prestígio onde o valor de troca é a imagem), os meme’s que movimentam a política – e agora, com a pandemia, o reinado dos monitores em geral.
Como consequência, a “representação” (tão criticada na arte), encontra uma especulação e sobrevalorização sem precedentes no seio da cultura. Aqueles que, como muitos, “não entendem” a Arte Contemporânea, saibam que o que ela promove, desde o início do século XX (mais precisamente, desde 1917 com o urinol A Fonte, de Marcel Duchamp) é um questionamento da função narrativa das imagens. Porque uma imagem é um texto visual; e esse texto, uma concatenação arbitrária de códigos convencionados. Em duas obras excepcionais, Jean-Léon Gérôme (pintor, contudo criticado por contribuir com a narrativa de consolidação do imperialismo europeu) ilustra exemplarmente essa coordenação “ideológica” que estrutura as imagens:

Alterando o ponto de vista da mesma cena, o artista nos coloca – ora sob a perspectiva dos mercadores de escravos, ora sob a da própria escrava leiloada. Uma imagem é isso: ela implica uma retórica que se fundamenta em determinado discurso – normalmente é guiado pelo código vigente, hegemônico da sociedade (o código de manipulação do poder). Sempre oposta ao regime do capital, a Arte Contemporânea em geral visa um recuo dessas construções ideológicas, instaurando o silêncio em lugar do acúmulo, a reflexão abstrata ao invés da condução coercitiva do olhar, o vazio prioritariamente ao ruído informacional do mundo. É assim que nos espaços onde esta arte é apresentada vemos, desde minimalismos e inscrições que passam quase despercebidas, até o tosco, o bizarro, o burlesco, o escatológico; a ironia no lugar do apelo indulgente das imagens super-editadas das revistas, redes sociais, publicidade, mídia, etc. (ou seja, a linguagem que o capitalismo normalmente emprega visando a coação emocional). Por isso, a “proposição” em lugar da adequação aos códigos vigentes; a “performance”, gerando experiências não convencionais onde antes a imagem realista proporcionava experiências banais; o ready made impermanente, ilustrando que a poética habita mesmo o universo mais prosaico…

Porém, eu creio que aquela função de “representação” da imagem seja incoercível. Talvez por isso uma disputa “por dentro” do terreno das imagens seja mais eficaz na luta contra a hegemonia. Tal função é tão remota que, ao refletir sobre o tema, lembrei-me de uma fotografia emoldurada em minha sala. Chama-se “Passaporte” e retrata uma espécie de miniatura de máscara de bronze oriunda do povo Dan (Costa do Marfim), que possuía o hábito de produzir esses pequenos rostos, usados em suas migrações como identificação da sua etnia de origem.
Alguns objetos também se revestem dessa função: permitem que seus donos atravessem territórios regidos por uma jurisdição diferente da sua. É o caso do “récade” (bastão) para os Fon, ou da “manilha” (dinheiro) para muitos povos da África Central e Ocidental.[1]
Essas máscaras, eram sinônimos de prestígio, e tidas, portanto, como “moeda” cujo valor estava associado à figuração. Nossos passaportes e documentos de identificação hoje em dia ainda são fundados na correlação mimética da representação. Este é apenas um exemplo de como é antiga a atribuição de valor à imagem, que hoje atinge o estatuto de autoridade absoluta.

Inevitavelmente, temos sido movidos por elas – inclusive os artistas contemporâneos, durante o isolamento pandêmico. As imagens são mais do que nunca nossa mediação com o mundo, e condição de nossos afetos. A que se destina isso senão a um único sintoma – o de fazer-nos voyeurs da vida alheia, e atores (nem sempre protagonistas) em nossa própria vida, fetichistas mascarados de um prazer escópico? Encerro lembrando da mais estranha das máscaras – a única que inviabiliza a representação: a máscara do carrasco. Ele a veste para o exercício de seu ofício trágico por ser ela o contrário de uma face: assim o capuz retira seu laço mais imediato com a humanidade, facultando a visão da única entidade capaz de executar a ordem do assassínio: uma entidade não-humana. Por detrás dos monitores, com a câmera desligada, não vestimos todos um pouco a imagem do carrasco?
Imagem da capa:
GUSTAVOT DIAZ, “PER(VER)SOMATÓGRAFO: 120 dias de Sodoma III”, da série JANELAS PARA NÃO VER, 2020 | carvão e papel sobre Montval (50x65cm)
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[1] Foto e texto extraídos do catálogo da exposição “Etnos: faces da diversidade”. Curadoria de Marcelo Dantas.
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Um comentário em “SINTOMAS DA ERA DA IMAGEM: VOYEURISMO E CEGUEIRA:”