
“O Desenho não se encontra fora do traço, está dentro dele.” (Ingres)
A única prática humana que não requer reflexão é a violência. O Desenho, considerado historicamente como elemento articulador das categorias artesanais, não pode ser reduzido à dimensão que comumente lhe atribuem: a esfera técnica. Reduzir o Desenho ao âmbito empírico – ou ainda, no polo oposto, somente ao “conceito” – implica uma mutilação de sua enunciação mais profunda: o Desenho é a resultante poética da integração entre saber e fazer.
A grande educadora e artista Fayga Ostrower enfrentou a problemática de lecionar Estética para trabalhadores com baixa escolaridade no livro “Universos da Arte”. Uma das premissas de seu método era nunca evitar a complexidade inerente em suas lições, afirmando que a Arte deixa de ser Arte quando sua profundidade é ignorada. Esta complexidade era conhecida dos mestres do passado e está à disposição dos artistas atuais, que possuem um privilégio em relação aos primeiros: alguns séculos de elaborações e teorizações. Outra vantagem do artista contemporâneo em relação ao artista clássico é dispor de uma academia organizada, estruturada em termos científicos. No passado, não era assim. O exercício teórico de se pensar a arte era errático e se limitava a artistas mais cultos e críticos fora do meio, em especial escritores e filósofos. Foi somente a partir da década de 60 do século XX que a historiografia da arte pode se emancipar da literatura. Nem mesmo havia metodologias testadas e abalizadas na antiga Academia, em termos técnicos: os métodos eram empíricos, passando diretamente de mestre a discípulo até pelo menos final do XIX, quando Charles Bargue e . Hoje, o artista deve estar ao corrente desse saber…. até porque é sempre desalentador um crítico saber mais acerca do trabalho de um artista do que o próprio artista.
A fim de fornecer ao desenhista subsídios que possibilitem o lastreamento de sua prática no campo da teoria, transformando o exercício do desenho num campo de explorações e especialmente elaborações próprias, deixemos esboçada uma conceituação inicial sobre a qual trabalharemos:
Desenho não é o traço, não é o risco, não é o gesto; não pode ser abstraído em apenas parte de suas operações ou procedimentos (tomando-se então esta parte pelo “todo”). Desenho é “disposição intelectual”[1] que não pode ser desvinculada de sua expressão plástica, sem a qual perde sua completude. E é, sobretudo, práxis – síntese precária da dialética entre solução visual e formal, intelectiva e plástica, espiritual e material – síntese que é a própria constituição do Desenho.
Se o desenho é atividade regulada pelo olhar – conforme expressão bem conhecida (“desenhar é ver”), e objetiva a mobilização do olhar, seu meio é, então o próprio olhar. Tudo o mais são acessórios seus: ferramentas, materiais expressivos, técnicas e procedimentos técnicos, mídias em geral, suportes, etc – que concorrem para seu fim. A finalidade do desenho integra o domínio do sensível, aquilo tudo que pode ser simbolizado, e que por isso foge à restrição do saber prático. A ordem teórica é capaz de apreender essa relação do sensível; a técnica aplicada só pode atuar na operacionalização desta articulação. O “conceito do desenho” não é ainda Desenho; assim como não é ainda Desenho a “técnica do desenho”. Desenho não é conceito, como não é apenas “efeito” (traço, indício físico, representação física, expressão material). Desenho é processo e articulação.

Esta concepção não é original: estava presente já na Renascença. Foi formulada por Leonardo da Vinci e por Michelangelo sob a chave do humanismo e reformulada em termos científicos nos séculos seguintes, quando toda atividade humana foi posta a serviço do logos. Dono de uma curiosidade epistemológica ilimitada, Leonardo interessava-se igualmente pelo funcionamento do voo de um pássaro, o engenho de uma máquina, a circulação do sangue ou o movimento das águas. Não é de menor importância ter refletido acerca do Desenho em suas anotações. Inúmeros apontamentos em seus sketchbooks mostram que o artista considerava o Desenho para além de mera aplicação mecânica, tomando-o também como objeto de apreciação filosófica. A historicidade desta atitude daria um estudo interessante. Vale citar ainda que a concepção de Michelangelo, célebre rival de Da Vinci, era essencialmente a mesma: “o homem pinta com seu cérebro, não com suas mãos”.
Essa dotação intelectual chegou ao ápice na segunda metade do século XIX, quando o Desenho pode ser avaliado de forma independente. Tal autonomia permitiu sua análise enquanto obra em si mesmo, e como origem do “estilo”. Uma boa síntese disso está na epígrafe[2] de Ingres (que inicia este artigo). Ingres, este exímio desenhista, vivo e atuante ainda quando já o desenho era radicalizado nas experimentações de Cézanne e subtraído da composição pelo cromatismo dos pós-impressionistas – opunha o “arabesco da forma” ao desenho de proporções[3] que vigorava no atelier de seu próprio mestre – Jacques-Louis David, chefe da escola Neoclássica do período. A diferença cabal entre esse último e a obra de Ingres é que, enquanto o desenho acadêmico se baseava numa disposição de “correção da natureza” (onde os modelos do mundo natural eram esquadrinhados e racionalizados a fim de se extrair deles uma combinação geométrica que figurasse como imagem “ideal”), na obra de Ingres, ao contrário, contraditava-se o diálogo com a natureza, negando, em última instância, o desenho de obervação. Embora controverso, esse posicionamento se aclara se considerarmos que, para Ingres só o desenho possuía as propriedades compositivas (e inclusive cromáticas): “a linha, bem entendida, é cor”. Ingres compreendia precocemente a forma pura como “substância e meio” da arte. Talvez nenhum outro artista antes dele soube dar esta exata dignidade ao Desenho, pioneiramente desligando-o da relação com a Natureza.
Ingres conferia independência ao Desenho; desvinculava sua relação direta com os modelos da natureza. Conhecia Anatomia, é claro, mas sua representação do corpo feminino, por exemplo, possui vértebras a mais a fim de enfatizar a “beleza da curva” (“esqueci-lhe os nomes, porém os músculos são todos meus amigos”). Partidário da ars gratia artis, Ingres advertia seus discípulos a “traçarem linhas”. A Degas, que o conheceu pessoalmente em 1855, disse: “Desenhe as linhas, jovem, muitas linhas, que venham a sua mente ou da natureza; dessa maneira você vai se tornar um grande artista”. O conselho nos sinaliza o seguinte: na exploração da forma, em suas relações e procedimentos, é que se encontra o Desenho, independentemente dos modelos, da natureza ou do cálculo proporcional. Daí é que o Desenho está “dentro do traço”.
Essa concepção motivou todo o espírito modernista na Arte: a cisão entre o olho e o modelo, a linguagem e o mundo. A “crise da representação” não começa propriamente com Cézanne – Ingres, o último dos clássicos, já havia enunciado a sua formulação. Era disso tudo que a ação revolucionária de Gustave Coubert se afastava, quando lançou os fundamentos do novo estilo realista no Pavillon du Réalisme de 1855[4].

Mas foi o Impressionismo a primeira escola artística a quebrar efetivamente a aliança entre o Desenho e o olho. Este fora o período em que o objeto rompeu seu pacto com a visão: a ciência óptica revelou que as cores são reverberações luminosas e que aquilo que vemos dos objetos são falsas impressões; a sensibilização da retina foi entendida então como mera impressão visual. A descoberta dos fenômenos luminosos justifica também o desprezo de Monet pela temática: “o tema é uma coisa secundária; o que eu quero reproduzir é o que existe entre ele e eu”. O olho pode assim libertar-se da falsidade aparente para se reconciliar com a verdade da representação.
O modelo não está no Desenho e o Desenho não está do modelo. A natureza não está dentro da forma; o Desenho, contudo, não é só forma. Se assim fosse, tal como um cego guiado no escuro pelo cálculo do artista, dele não resultaria nenhuma representação, nenhuma poética. O desenho é forma e espírito: forma, enquanto ponto, linha e plano; espírito, quando – por meio da habilidade que somente a mão treinada pelo olho pode realizar e perceber, seus elementos instauram justamente o que eles próprios não dizem senão em articulação – e que no entanto, sem eles, não apareceria.

[2] VALÉRY, Paul. Degas dança desenho. São Paulo, Cosac Naifi,2003, p. 55.
[3] Idem.
[4] O primeiro não oficial “Salão dos recusados”, quando a iniciativa pioneira e radical de Gustave Coubert instaurou a escola realista na pintura rearticulando a figura humana dentro da arte, e a própria forma de exibição artística.
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imagem capa: Fotografia | Edgar Degas sentado diante de uma escultura de Albert Bartholomé (c. 1895, gelatin silver print, 11¼″ x 16½″ [28.6 x 39.4 cm]). Musée d’Orsay.











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