Falamos da experiência visual que arquitetou a própria inscrição do artista como testemunha da História enunciando, assim o lugar do artista. A esta altura, já distinguimos com maior clareza o que são vivências cotidianas (pelas quais passamos a todo momento no viver), e tal experiência visual – que é a “vivência elaborada”. Anteriormente, também defendemos que a experiência visual, uma vez emulada em procedimentos técnicos (perspectiva e demais operações da linguagem visual), daria conta de “superar”, por assim dizer, paradoxos constitutivos da criação poética, na medida em que situa os processos subjetivos em função da compreensão (até onde é possível) de coordenadas simbólicas, em função das quais a experiência se organiza. Tal compreensão impede a precipitação de estereótipos, deixando emergir uma “percepção” mais “imediata” da experiência que funda o lugar subjetivo do artista – a isso chamamos olhar.

Mas, o que é a experiência?, Para responder, buscamos o recurso da Psicanálise – sem dúvida, o campo mais profícuo para responder essa questão, uma vez que investiga precisamente os lugares do sujeito em relação à linguagem (poderíamos também dizer que investiga os olhares daqueles que são sujeitos de experiências). Antes de se falar da experiência enquanto fenômeno, é preciso pensar quem é o sujeito suposto de tal experiência. E ainda antes disso, desenvolver um pouco do contexto imaginário e simbólico sobre o qual ela se dá.
O QUE É O REAL?
O real é que vamos morrer. Nossa morte não terá data marcada: virá de súbito, bruscamente. Não há possibilidade de evitar, nem mesmo se preparar; ela virá, e será permanente. Pode acontecer antes mesmo de eu terminar esta linha. Antes e depois dela, não temos mais do que vagas especulações. Mas há coisa pior: estamos vulneráveis a, em qualquer momento, perder um dos sentidos e estarmos condenados a viver numa cadeira de rodas, ou preso a uma cama, em coma, ou termos de nos locomover com a ajuda de um andador – o que acontecerá fatalmente, caso venhamos a envelhecer… Mas, o real pode ser ainda pior: podemos descobrir que já vivemos sob uma condição precária, onde uma sucessão de eventos traumáticos teceu em nós uma armadura psíquica, da qual não nos conseguimos livrar, pois sequer distinguimos qual nosso limite dentro dela; desaprendemos mesmo a viver sem ela. A essa armadura, damos o nome de sujeito, portador de uma identidade.
Por que a realidade não parece ser assim mesmo, crua e brutal como é? Por que nos parece estável? É porque retiramos dela precisamente um elemento: o Real. O Real é como aquele personagem de desenho animado – o “Homem Invisível”, cujo super-poder ocultava ao mesmo tempo sua fragilidade: era difícil pegá-lo, a menos que você tivesse um simples lençol! Uma vez atirado sobre ele, seu poder desaparecia: ele poderia ser facilmente identificado e capturado. O Real, conforme enunciado por Jacques Lacan, assemelha-se à condição do Homem Invisível: ele está na sala, mas não o vemos. E assim como o super-herói, a forma de captura é semelhante: o Real se revela por um lençol – o lençol da linguagem. Com uma diferença: quanto mais lençóis lhe atiramos por cima, mais distante é a chance de agarrá-lo.

Não é possível apreendê-lo, metabolizá-lo em linguagem, elaborar para ele uma síntese. Por isso, ele retorna; “não cessa nunca de não se inscrever”. Onde retorna, onde é que não deixa de não se inscrever? Justamente no tecido que usamos para escondê-lo: a linguagem. Esta é a razão para que aí – na linguagem, resida o inconsciente. Não é possível ser de outro modo: no tecido da linguagem é que irão se costurar as formas de retorno desse Real (chistes, atos falhos, sonhos, sintoma).
E porque somos “seres de linguagem”, somos seres divididos: nossa relação com ela (a linguagem) é fundamentalmente de alienação. Esse é um dos pontos de maior interesse para os processos artísticos, uma vez que a linguagem é matéria do artista: cabe a ele a função de criar imagens que “ensinam a desejar” (atribuição que Slavoj Zizek dá ao cinema), portanto, de gerar identificações, cujo efeito tomamos como a verdade das experiências de realidade.

O Real, fundamentalmente composto de caos inapereensível, repetição e tédio, nos parece, dizíamos, não apenas estável, mas também confortável, oferecendo até mesmo uma acomodação na qual podemos acreditar sermos felizes. Mas isso só acontece porque o tecido simbólico com que envolvemos o Real a fim de sondá-lo produz efeitos de identificação mediados pelas imagens (único meio de a realidade parecer ofertar uma acomodação, um lugar possível de se viver), de que se constitui nosso imaginário. Somente sob sistemas de identificação – ou seja, de simulação de simetrias (idem = o “mesmo”, assim como “igual”, de aequalis = “idêntico, parelho, justo”) é que as coisas podem aparecer. Isso significa que se mostram entretecidas num sistema de projeções ilusórias, fantasmáticas.
A cisão entre aquele que pensamos ser e aquele que expressamos se mostra, na verdade o tempo todo. Notamos facilmente que as palavras não nos pertencem – “não era isso que eu queria dizer”, “me expressei mal”, “fui mal interpretado”, “falo uma coisa e entendem outra”, “eu explico, mas eles não entendem”, etc são expressões comuns demais em nosso dia-dia para que as tomemos como mera casualidade. Em resumo, segundo a bela síntese de Lacan: “a essência da comunicação é o mal entendido”
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Deixo uma lista de excelentes psicanalistas que atuam como teóricos – todos bastante presentes nas redes sociais, e com canais YouTube, para quem se interesse em aprofundar o tema da psicanálise lacaniana:
- Christian Dunker
- Vladmir Safatle
- Maria Homem De Melo
- Welson Barbato
- Guilherme Facci
- Benilton Bezerra
- Vera Iaconelli
- Saulo Durso
- Mario Eduardo Costa Pereira
- Flávio Mendes
Ouça no Spotify também o episódio de nosso Podcast Desver, no qual abordamos o assunto:
Imagem da capa:
VANIA COMORETTI, “Shadow” | aquarela, tinta da china e pastel sobre papel (50×30,5cm)
iMAGEM DA CAPA
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