[PROCESSOS POÉTICOS 3ª ED] SEGUNDA AULA | “DESVER”: UMA EXPERIÊNCIA VISUAL

E, se tento compreender e saborear esse delicado gosto que o segredo do mundo confia, é a mim mesmo que encontro no fundo do universo. (…) E, então, quando sou mais verdadeiro do que quando sou o mundo? Sou presenteado antes de ter desejado. A eternidade está ali, e eu esperava por ela. Agora, não desejo mais ser feliz, e sim apenas estar consciente.

ALBERT CAMUS, O direito e o avesso
NICOLAS SAMORI, Piaga Antiveduta (da serie Voltany), 2012 | óleo e fogo sobre cobre

No episódio desta semana do Podcast DESVER, onde entrevistamos o aquarelista e filósofo Marcos Beccari, este nos diz que a mediação se dá por uma “articulação simbólica” (ou simbólico-imaginária, em termos psicanalíticos), que nos informa do mundo. “Informar” aqui é um bom verbo, pois se trata justamente que colocar na forma: o sensível, que é o terreno próprio das artes é o que realiza a mediação entre os sujeitos e o mundo. O mundo não vem imediatamente para nós como mundo – isso seria uma complexidade inconcebível e  absurda. O mundo nos chega através de imagens, sons, etc. ou seja – traduções sensíveis, afetivas, de um possível real que criam pra cada um de nós uma certa “experiência de realidade”. Essas traduções são edições: aí está a articulação simbólica.

O cinema nos oferece um bom exemplo disso na terrificante experiência da cena em que personagens interagem quando, de repente o cinegrafista dá um passo atrás com a câmera, ampliando o campo de visão e revelando em torno dos atores as câmeras, rebatedores, microfones, cenários, etc. Assim como em um filme, a vida também é uma edição, uma narrativa ficcional com personagens e situações que filtradas por nosso imaginário.

Por isso é preciso a maior e mais abrangente gama de articulações no plano simbólico, de modo a permitir que cada um expresse a infinitude que tem dentro de si. Esse “infinito particular” só pode expressar-se ao encontrar ressonância lá fora; ou seja, se o sujeito se reconhece em algo no mundo, se essa coisa que procura expressão nele encontra identificação com algo externo, algo da cultura.

CLARA LIEU “Scars that Speak No. 5″, 2016 | grafite sobre seda (24″ x 18″ x 3”)

Meu pediatra que dava um sábio conselho: “É preciso ter de tudo um pouco no mundo, e é preciso experimentar de tudo”. Imagine se um jovem tímido chamado Paul não houvesse, um dia recusado a lógica de seus pares e tivesse evitado pintar sem as mediações simbólicas da perspectiva brunelleschiana – em vigor no seu tempo; se este jovem, cujo sobrenome é Cézanne, não tivesse tido essa audácia, sem dúvida também não existiria um artista chamado Pablo Picasso. E imagine se Picasso – que na adolescência aprendera como todos do período, o desenho figurativo “realista” – imagine se ele não houvesse dado o passo seguinte; se por medo do que diriam ou por receio de sair fora da curva, tivesse se limitado à figuração acadêmica?

Todas essas transformações na arte que debitamos na conta de artistas, de suas excentricidades, inspirações, genialidades, esquisitices são, na verdade, demanda sociais. A arte não é sobre o artista – ele pode ser “antena da raça”, como diria Ezra Pound – mas a arte é, sobretudo acerca do outro; mais especificamente, a arte dá expressão a esse outro, tornando possível que se reconheça ao fornecer-lhe elementos com que faça suas articulações simbólicas, suas mediações com o mundo, etc. De modo, não apenas entender o mundo, mas entender-se no mundo.

Por isso, a arte precisa dar sempre um passo além e metabolizar em linguagem as aspirações que já se encontram na cultura ainda incipientes, difusas, pouco visíveis: não estão prontas para se oferecer como mediação aos sujeitos. A mediação – grande vocábulo contemporâneo, talvez seja hoje a habilidade central de um artista. Uma história oriental ilustra bem esta reflexão:

Estando o mestre à porta da cidade, um viajante recém-chegado lhe pergunta:

– Senhor, por favor me informe acerca desta cidade; estou de mudança, à procura de um novo lar.

Ao que o mestre responde:

– Me fale antes de sua cidade de origem, como era ela?

O viajante lamenta: era cheia de vícios e corrupção; saia de lá justamente por isso. O mestre então lhe diz: “Sinto informar, mas aqui é a mesma coisa…”

O viajante, agradecido vai em busca de outro lugar pra morar.

Logo, outro viajante se apresenta, fazendo a mesma pergunta do anterior; ao que o mestre responde com a mesma questão “Como era sua cidade de origem?”. Mas este novo viajante diz:

– Pois lhe digo que saio de lá com peso no coração, era uma cidade muito amada, maravilhosa para se viver.

E o mestre, então responde:

– Então, seja bem-vindo! Aqui é também uma cidade muita amada, maravilhosa de se viver!

Penso que o artista deva se orientar por essa conduta do mestre – o qual não apresenta ao outro uma coisa própria sua, mas media os elementos da cultura a fim de que o outro perceba algo dele (algo propriamente do outro).Esse é o papel de mediação, o papel profundo do artista –  muitas vezes desconsiderado em nome de uma expressão “pessoal”, “subjetiva”, etc. Aí pode haver expressão artística; mas nesse caso, é expressão para o próprio artista: se não toca ao outro (se não lhe diz respeito) não toca o outro. Não informa, não atualiza esteticamente, não oferece elementos para a “estranheza” dele encontrar ressonância, se identificar e poder se reconhecer. É somente assim que o público se expressa através do artista, não o contrário.

Visito exposições que não me informam nada de mim; as mais bem sucedidas, talvez me informem acerca do artista – mas, francamente isso é o que menos quero saber no mundo. A vida e os interesses privados do artista não me interessam mais do que os interesses privados de minha própria vida. O que interessa aos sujeitos são normalmente eles mesmos… Por isso, julgo que a função do artista é fazer essa mediação através da qual o sujeito se conhece ou se reconhece como pertencente a certa cultura. O que me informa que eu sou brasileiro, tenho certa “identidade”, venho de determinado lugar, etc? As formas simbólicas. Uma frase que ouvi ampassã de Ferreira Gullar enuncia melhor isso:

“Eu não sei o que é arte, mas quando vejo um objeto que descortina em mim algo desconhecido de mim mesmo, sei que estou diante de um objeto artístico”.

NICOLAS SAMORI, “Anulante” (2018) | óleo sobre (70 x 50 cm)”

Identificar-se com as identificações

Interioridade

Quanto às identificações resta abordar dois problemas. O primeiro, quanto ao nível de autonomia que o artista angaria em relação a sua própria interioridade – quer dizer, o quanto de si de fato ele deposita na obra. Se precisa romper com identificações exteriores para iniciar o longo caminho em direção à poética, como irá saber quem é? Esse desapego com as formas e convenções da cultura retira justamente a “identidade” do artista – essa que supostamente deveria reforçar na expressão autoral. Acontece que nossa identidade – isso que nos parece mais próprio e próximo, é na verdade calcado nas tais identificações. Sem recusar essa identidade – que, afinal vem das projeções e do reconhecimento “de fora”, o artista estará para sempre impedido de encontrar-se com sua interioridade. Esta, se existe de fato, é sempre mediada por predileções simbólicas, culturais (que chamamos aqui de identificações) – de que modo então recorrer a ela para descobrir o que em mim não é o outro?

A primeira tarefa, é filtrar o que vem nos constituindo “de fora”, escrutinar as referências que escolhemos e que nos cercam, questionar a posição que ocupam as coisas do mundo que construímos a nossa volta – isso revela precisamente a nossa posição subjetiva/discursiva no mundo. O próximo passo é encontrar uma lacuna, um espaço vazio entre essa pretensa “interioridade” sem forma, e as formas simbólicas que a vestem para que nos apresentemos ao outro (mais à frente no curso estudaremos como a Psicanálise enxerga essa questão). 

Exterioridade

Se o primeiro problema versava sobre a possibilidade de expressão de uma interioridade, o segundo é sobre a autonomia em relação às identificações da cultura. Até o século XIX, o conceito de expressão significava ter domínio sobre a sintaxe de uma linguagem; “expressar-se bem” coincidia, então com o domínio de uma gramática específica. Ao final daquele século, isso muda radicalmente: expressar-se bem passa a ser, não apenas o ordenamento e controle dos elementos de uma linguagem, mas quase que o contrário disso – o sentido de expressão foi ligado à desarticulação dos padrões normativos da língua em nome de maiores efeitos expressivos. Assim é que a má pintura dos modernistas expressava mais do que a alta técnica dos neoclássicos tardios do período.

Acontece que o resultado de se abrir mão das convenções dando vazão a uma expressão mais íntima, menos mediada do artista é a emergência do “estranho”, do esquisito, do excêntrico – isso tudo que o nazismo denominou resumiu como “arte degenerada”. Não é à toa que regimes totalitários temam a estranheza, a pluralidade, o debate, a alteridade. Numa palavra: temem a “diferença”. É porque, enquanto a identificação é um espaço em que os sujeitos se reconhecem; a diferença é um espaço em que eles se conhecem.

CARMEM MANSILLA “Caixa de provocações (autorretrato)”| óleo sobre tela

Disso resulta o seguinte problema ao artista: o que produzirá não serão obras genéricas com as quais multidões irão se identificar (esse lugar é ocupado pela indústria cultural). O objetivo do artista é descobrir uma voz, uma forma, uma articulação da linguagem única, singular – literalmente,  produzirá algo estranho. Não é de graça a fama de “incompreendido”, “excêntrico”, etc…

Consideremos o que foi dito no artigo anterior: é preciso o escrutínio sistemático, rigoroso, impiedoso de nossas identificações (daí a importância do desapego). Esse nos parece o melhor modo de oferecer elementos pra conjugação daquela “articulação simbólica” de que Marcos Beccari falava no Podcast. Claro, o primeiro a ter as identificações escrutinadas é o próprio artista.

Todo ser é sempre um ser em processo – daí que as identificações são âncoras, são “alfinetes” que nos fixam no mapa da existência. Ser é, na verdade, estar.

Simplificando o conceito de identificações, poderíamos pensar neles como “estereótipos”: formas tipificadas que se repetem no interior da cultura. A força e resiliência dos estereótipos na cultura é devida a um suposto saber prévio, uma adoção imediata de certas formas – “nada é tão prejudicial à sabedoria como a excessiva sagacidade”, disse Sêneca.

No desenho infantil é onde os estereótipos mais aparecem. Lembro com detalhes das aulas de arte na minha infância: a professora abria um enorme rolo de papel kraft, como um tapete, pelo chão e dispunha potes com tinta guache. Após isso era – Expressem-se livremente. crianças! Só que, ao invés de representarem cada um seu universo interior, particular, único e singular, algo miraculoso acontecia: elas desenhavam sempre as mesmas coisas, exatamente do mesmo jeito: casinhas de telhado com chaminé, sol com raios estriados, árvores que pareciam nuvens… Estereótipos.

Por isso a livre expressão – ou seja, a expressão livre de condicionamentos, referências, etc, é tudo, menos livre: ela não oferece à criança subsídios, nem repertório de linguagem pra poder rearticular de modo a ter uma chance de encontrar uma forma singular Ou seja, a criança não tem identificações suficientes. Note como é complexo o tema: ora precisamos delas, ora elas nos confinam numa linguagem que é do mundo, não nossa. Só o fato de elas serem necessárias pra formação da identidade, pelo fato de serem inevitáveis – até porque são, em grande parte inconscientes –  identificações terminam por nos instalar sempre na mesma posição.

Estar sob regimes de identificação padronizados, normativos, convencionados é confortável porque não é preciso sustentá-los: eles já são socialmente suportados.

Em suma, ao invés de você ser quem é –  algo de único, singular e sublime criando ao longo de milhões de anos de evolução no Universo, você opta por formatar-se a um determinado “tipo social” (motoqueiro, socialite, playboy, etc) onde o pensamento original não é bem-vindo (posto que a moeda de troca do reconhecimento no interior desses grupos são sempre as mesmas ideias circulantes, as mesmas referências compartilhadas), e onde não é preciso decidir como reagir e interpretar o mundo: os grupos previamente disponibilizam uma versão determinada disso tudo.

DANIEL SEGROVE | técnica mista sobre papel

Outras implicações

Retomando o problema antes iniciado, o ideal seria não pertencer a grupo nenhum. O problema disso, afinal, qual é? Se você não pertence a grupo nenhum, também não é “reconhecido”. A fim de sê-lo, outros devem primeiro identificar-se com a sua produção. E para levar a efeito esse diálogo – se faz necessário entrar em processos de identificação com o outro, partilhar das mesmas referências, gostos, etc. Finalmente, se por esse caminho você alcançar fama e “reconhecimento”… eis que é chegado o momento sublime da realização? Não.

Esse é precisamente o momento mais difícil, onde será preciso se desconstruir de novo, liberar-se das identificações que o colocaram nesse lugar a fim de encontrar o novo “eu” que está permanentemente atualizando sob elas. O artista pode tudo, menos ser igual a si mesmo… Fazendo isso, contudo – ele perde seu público.

Um dos problemas das identificações é facilitam a estratégia de captura pelo sistema. Não costumam oferecer ao público a fruição de uma expressão singular, enraizada em tradições significativas que deem contexto cultural e existencial; pelo contrário, converte a todos em meros (e idênticos) consumidores.

EUAN UGLOW, “Double Square Double Square” 1980-1983| óleo sobre tela

Para o artista haverá ainda outras implicações, afinal ele não almeja encontrar um estilo, mas encontrar-se num estilo. Quando alcança uma voz, deve-se perguntar: será realmente a minha voz? E esta há de sempre ser a voz a melhor representa minha versão neste momento, que sempre se renova? Para que essa voz pertença e brote, de fato – é necessário desimplicar-se ao máximo de identificações. São alheias, não nossas… E, no entanto, sem identificações é impossível criar!

De novo Picasso vem a propósito: em suas inumeráveis fases, biscava ora a vitalidade na arte grega, agora em tradições folclóricas, ora nas máscaras africanas, etc.

O que Picasso fazia, no entanto, não era plagiar e reproduzir as vozes dessas fontes de referência: era apropriar-se deles e dando a eles a sua própria feição. Identificações são necessárias, mas é preciso considerá-las com extremo cuidado, pois elas ao passo que possibilitam as mediações artísticas, podem também ser castradoras da experiência individual.

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Capa: NICOLAS SAMORI, 2021 (da exposição “Cicatrizes”) | tinta a óleo
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Publicado por Gustavot Diaz

Artista visual e escritor, co-fundador do espaço artístico MÍMESIS | Conexões Artísticas em Curitiba, e ministrante do curso Processos Poéticos. Vive atualmente em Porto Alegre (RS).

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