[PROCESSOS POÉTICOS 3ª ED] TERCEIRA AULA | AS DIMENSÕES DA IMAGEM (PARTE I)

Paul Valéry ministra as Lições de poética no Collège de France a partir de elaborações que partiam da crítica ao academicismo vigente na arte, e da exigência da participação ativa do artista (em toda sua subjetividade) na concepção da obra. No último encontro, vimos como o autor vai assim dando contorno ao que mais tarde conheceríamos como “poéticas visuais” – considerando o acréscimo do último século, onde o conceito foi ganhando densidade.

ABDI ASBAGHI (óleo sobe tela)

É interessante notar que, mesmo fazendo uma crítica contundente ao tecnicismo da produção neoclássica tardia, Valéry não abre mão de uma característica desta escola: o rigor. Ele mesmo um cultor da artesania e do trabalho minucioso na escrita, ao passo em que denuncia a padronização como norma, Valéry critica também a ideia de talento como pressuposto de qualidade artística. Em sua visão, a criação poética era “resultado de um processo de construção” condicionado ao “estudo, reflexão, disciplina e dedicação” (CORTÉS, 2016). Não custa lembrar que seu amigo mais íntimo, Edgar Degas, era fã incondicional de Ingres – o último dos neoclássicos (talvez o maior desenhista desde Jacques-Louis David).

A intenção de Valéry é transformar o fazer artístico (poien = criação) num “ato do intelecto”, garantindo autonomia ao artista e seus próprios métodos de criação frente ao receituário acadêmico em vigor. Tal intenção teve vastas implicações. Um trecho do livro Variedades, terminava assim:

O campo que estou tentando percorrer – a poética, é ilimitado, mas tudo se reduz às proporções humanas, assim que tomamos o cuidado de mantermo-nos em nossa própria experiência. Nas observações feitas por nós mesmos, através daquilo por que passamos, esforço-me por nunca esquecer que cada um é a medida de todas as coisas.” 

Paul Valéry, Variedades

Nosso encontro hoje tematiza justo essa experiência do artista: onde ela inicia na história? Quando e onde a experiência pessoal do artista passou a integrar o conjunto da arte e ganhar valência? Se o mundo é, por assim dizer, a matéria do artista – a sua experiência pessoal é a substância do trabalho; de que se trata essa substância? Abordaremos neste artigo as seguintes questões: 1) Quando a arte passou a incorporar a subjetividade do artesão (que, então “mereceu” o título de artista) 2) De que se constitui tal “experiência”, quer dizer, qual a sua estrutura ontológica? (Responderemos esta última pergunta num próximo artigo, recorrendo a conceitos da Psicanálise).

Nestes magníficos afrescos de Ambroglio Lorenzeti, flagramos um momento em que a arte migra do simbólico e começa a demandar uma interpretação (portanto, subjetiva) do artista. A subjetividade não é idêntica a si mesma; muda com o tempo; eu iria ainda mais longe: houve um tempo em que não havia subjetividade, como a gente a concebe hoje. Os gregos, por exemplo claramente não concebiam essa espécie de introjeção de sentimentos que define a sensibilidade moderna. (Neste terceiro encontro do Curso PROCESSOS POÉTICOS, analisamos a fundo estas implicações na obra de Lorenzeti. Outro “marco” da introdução da experiência na produção artística foram os experimentos de Filippo Brunelleschi, cujos desenvolvimentos estão sintetizados nos artigos neste link).

O que é ver, senão sofrer uma experiência?

Falemos um pouco da visão e de algumas dimensões da imagem. Seria oportuno começar repensando primeiro significado do termo “Realismo” – conceito que, historicamente serviu pra denominar coisas absolutamente diversas, inclusive opostas. Outras questões se apresentam, de imediato é: o que é o “real”? Como o vemos? Como se experiencia essa suposta realidade, na qual vemos nossa própria existência constituir? Aí reside o primeiro problema: como falar de um fenômeno de que somos constitutivos? É exatamente como a história dos dois peixes que se encontram com um terceiro, que diz – “Bom dia! A água está quente hoje, né?”. Ao que os peixes se entreolham, espantados e perguntam:– “O que é água?”

Sabemos que o Realismo em arte fora um movimento bastante específico, surgido com data e hora marcada, inaugurado por Gustave Courbet (na literatura, será iniciado por Gustave Flaubert), que consiste em certa “fidelidade mimética” a traços de um determinado modelo. É quando se parece ou não, quando há o efeito de mimesis (“representação”, em grego). Vamos descrever de uma forma mais precisa: realismo é quando há uma correspondência convencionada de certos traços entre o modelo e uma articulação formal. Não é difícil deduzir que essa correspondência é essencialmente ilusória. Num sentido formal porque se trata de uma síntese, como bem disse Jean Baudrillard:

Criar uma imagem consiste em ir retirando do objeto todas as suas dimensões, uma a uma: o peso, o relevo, o perfume, a profundidade, o tempo, a continuidade e, é claro, o sentido.

Jean Baudrillard

Isso revela uma convenção tácita: quando certas coordenadas evocam ou insinuam experiências semelhantes, então se trata de uma “representação fiel” do modelo – onde a imagem funciona como um indexador da realidade.  Assim, uma imagem realista é uma imagem que garante uma semelhança precisa ou rigorosa, do ponto de vista formal. Mas é, afinal “rigorosa” com o quê? Falamos de rigor técnico quando citamos o Valéry; aqui a pergunta principal é: a que “realidade” a imagem realista supostamente remete? Independente do “rigor” na semelhança entre referente e referência – a similitude depende sempre de uma convenção bastante específica; o rigor aí é medido pela mimese com uma certa dimensão, bastante específica dos corpos – sua aparência.

Acontece que, não apenas a aparência dos corpos é mutante: o olhar do expectador (que afinal é o protagonista do diálogo com a imagem) também ele é flutuante, instável, se transforma a todo momento, muda de ponto de vista; inclusive é transformado retrospectivamente pelo contato com o desenho, pelo diálogo estabelecido.Noutras palavras:  o desenho se dirige a olhos anônimos – não se sabe previamente quem o verá; seja como for, a fim de entendê-lo tal destinatário precisa conhecer e partilhar dos códigos linguísticos constituintes da imagem. Se o expectador não dominar o mesmo sistema de coordenadas específicas (que estruturam a linguagem visual),ele sequer verá o desenho; se o vir, não irá entender, contudo.

JUAN MARTINEZ CANOVAS, “Till death do us apart” | lápis sobre papel 300g

No encontro abordamos duas versões de uma bela história – uma mítica, outra verdadeira, que nos revela a natureza desse diálogo tácito entre observador e observado.  A história referida é a do Conde La Pérouse, designado pra realizar uma viagem de circunavegação. A expedição tinha 220 homens, e saiu do porto de Brest – que existe até hoje na França, em 1785 (detalhe impressionante: um jovem de 16 anos se candidatou pra ir, mas não foi aceito e acabou ficando na França; um jovem que se chamava Napoleão Bonaparte). Essa foi a maior e mais audaciosa expedição científica realizada até então, e contava com um astrônomo, um médico, naturalistas, matemáticos, sacerdotes e artistas. Possuia, claro objetivos políticos ademais: criar relações com os espanhóis, estabelecendo cooperação e bases francesas nas colônias da América.

La Pérouse sai então do porto de Brest e no mesmo ano chega à antiga Vila de Nossa Sra. Do Desterro (hoje, Florianópolis) em 1785. Segue viagem e contorna o cabo Horn (último obstáculo ao Sul entre o Atlântico e o Pacífico), passa pelas Ilhas de Páscoa, indo até o Hawaii e, enfim desembarca no Alaska – que é onde começa nossa história. (La Pérouse chegou à China, visitou a Coreia e várias regiões do extremos orienta da Ásia, onde depois naufragou completamente).

SARA GALLAGHER, “Lá fora”, 2020 | Grafite sobre papel (61 × 55,9 cm)

Lá chegando, uma das situações mais interessantes aconteceu ao encontrarem um povo originário do Alaska: os nativos fugiram assustados, identificando a embarcação com a entidade central de sua cosmologia – o deus “Corvo”, que transformava em pedra quem o olhava diretamente. Ora, segundo a tradição da tribo, esse deus possuía o corpo preto e enormes asas brancas. É sabido o costume de se esfregar betume (piche) no casco dos navios para impermeabilizá-los… Daí calcula-se o susto dos tlingits ao avistarem no horizonte as velas das enormes fragatas de La Pérouse, com os cascos enegrecidos! Um velho guerreiro da tribo, já quase cego, ofereceu-se então para se aproximar e averiguar. Lá chegando, percebeu tratar-se de mera construção humana, e o contato entre os povos aconteceu.

Essa história antecipa nosso próximo conteúdo da Psicanálise. Nosso pensamento funciona por identificação, começando por associações simples, até a criação de sistemas que antecipam e projetam certa organização no mundo a partir de uma expectativa de regularidade: tudo puramente imaginário, entretanto! Onde há imaginário, há antecipação. E o que são as imagens senão representações “imaginárias” – seja na ciência, que cria grandes sistemas de representação para avaliar o mundo, seja em nosso mais singelo desenho? O problema central do desenho é que ele é um modo de ver, o que implica “lutar” contra a própria visão. Quando a gente vê uma coisa, o cérebro faz um primeiro reconhecimento, produz como que um mapa (ou um “traço mnêmico”, conforme sugeriu Freud) – que mais tarde a Gestalt compreendeu: nossa percepção faz um ajuste da forma, um fechamento, baseada na pregnância. Depois deste primeiro mapeamento, ela não vê mais. A fim de poupar a energia de um novo reconhecimento, o pensamento como que substitui a coisa pela expectativa da coisa, pelo mapa anteriormente formulado. Por isso o futuro é sempre um espelho torto, um reflexo mal feito do presente, e por isso é tão difícil desenhar: tais mapas, que funcionam como estereótipos, emergem a cada momento. Conforme já escrevemos em outro artigo:

Aqueles que fogem, permanecem na ignorância. Tornam-se pedra os que apenas veem, sem saber. Mas o guerreiro pôde ver porque conheceu – fez a jornada por meio da qual o navio tornou-se objeto de seu saber, parte de sua realidade cognoscível. O relato elucida a necessidade do esquecimento daquilo que se sabe a fim de desaparelhar a visão. Colocado de outra forma: para ver é preciso conhecer, mas para conhecer é necessário primeiro desconhecer. Deixar de saber é o único meio de se abrir ao desconhecido e se colocar na posição de vir a saber algo. Sendo assim, desenhar é minar as estruturas da própria visão; desenhar é desver. Todos os objetos se comportam para o olhar iniciante como a embarcação descrita no relato tlingit porque nascemos cegos – o olhar será produto de um trabalho sistemático, uma conquista adquirida no contínuo e, por vezes doloroso, esforço de cognição. O trabalho do desenhista será o de substituir a imagem interior que traz dos objetos (estereótipo) por aquilo que ainda não possui dimensão visível (e por isso ainda não foi percebido). Isso implica não apenas dominar uma técnica ou manejar ferramentas – a verdadeira ferramenta do Desenho é o olhar; mão e lápis são extensões dele. Só então é que a visão instaura a forma, concebe o objeto, inventa seu modelo. Apenas o que se conhece pode ser visto e, logo desenhado; e assim ver é também dar a conhecer.

(Su)realismo

Voltemos ao Realismo e à questão do Real iniciada antes. É justamente o entendimento de que o que vemos é muito mais imaginário do que real, o pressuposto que deu origem ao Surrealismo. A noção de que a realidade é de algum modo uma edição da nossa experiência de realidade é que concede aos surrealistas aquela “edição do real” em seus  trabalhos – fazendo o que o cinema de Eisenstein havia antecipado, editando o real para reinventar a relação do sujeito com sua própria realidade (por isso a dimensão altamente política do Surrealismo, que questionava a função das aparências como “indexadoras da realidade”).

Quando eu mesmo comecei a pensar o desenho como “coordenada visual”, reencontrei o desenho como linguagem. Ver e pensar o desenho integralmente enquanto linguagem acarreta considerar que o Desenho tem uma natureza autônoma ao “real”. Essa natureza é definida pelo diálogo com o olhar do expectador. Alguma coisa acontece no contato entre o “desenho” e o olhar do expectador: uma reação é mobilizada ali:

Em contato com as coordenadas simbólicas que o artista estabelece no papel, o olhar se torna sujeito de uma experiência.

Essa é a natureza do fenômeno que entendo por Desenho. Já falei que afetos mobilizam e geram experiências – não conceitos abstratos. Ora, as coordenadas visuais que o desenho vai colocando em operação no olhar do observador vão tomando um “sentido” (a palavra aísthesis, do grego, significa “percepção, sensação”, de onde deriva Estética). Assim, o Desenho ativa a visão; vai evocando sentidos. E quando se dá sentido a um afeto, uma experiência é produzida. 

ALBA FABRE SACRISTÁN, óleo sobre tela

Essa é experiência visual que interessa criar: aquela onde o desenho leva adiante o campo perceptivo do observador, onde esgarça os limites do possível, incluindo no mundo a imagem do impossível, até então inimaginável (que não tinha imagem).

O desenho cria narrativas – e essa narrativa produz afetos, cria laços. Só que, aparentemente não é a visão que gera a crença no que se vê, é o contrário: a crença é que faz a visão. Depois que o xamã da primeira história que contamos enxerga as caravelas, ele conta aos demais e eles então veem também porque confiam nele.O conceito, o saber vem antes do olhar, é ele que possibilita ver.

Isso explica o poder impressionante da disseminação de fake News: não importa o conteúdo ou qualidade da informação – ela é compartilhada baseada, não só no viés de confirmação, mas principalmente pela relação de afeto e confiança entre remetente e emissor. Agora nos interessa saber acerca da constituição ontológica da “experiência”, cujos desenvolvimentos serão abordados no próximo encontro.

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Capa: THEODORA DANIELA CAPAT, 2021 | lápis sobre Stonehenge (35×55,5)

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Publicado por Gustavot Diaz

Artista visual e escritor, co-fundador do espaço artístico MÍMESIS | Conexões Artísticas em Curitiba, e ministrante do curso Processos Poéticos. Vive atualmente em Porto Alegre (RS).

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