FIGURA CONTEMPORÂNEA: A técnica do desenho e a ressignificação do Hiper-realismo

4–6 minutos

·

·

RÓMULO CÉLDRAN | lápis e tinta acrílica sobre tela (122 x 192 cm, 2013)
RÓMULO CÉLDRAN | lápis e tinta acrílica sobre tela (122 x 192 cm, 2013)

Primeira parte do conteúdo a ser ministrado na Oficina“FIGURA CONTEMPORÂNEA:  Técnicas tradicionais e Hiper-realismo” (Florianópolis | 23, 24 e 25 de Fevereiro | 2016)

A expressão é o que possibilita a existência – é sua plataforma constitutiva e fundacional. Logo que expresso, passo a existir, uma vez que minha existência é “informada”, posta na fôrma da linguagem, tornando-se inteligível. Freud afirmava que o ser se “humaniza” quando nasce para a linguagem. Essa declaração, elaborada mais profundamente por Jacques Lacan, pode ser resumida do seguinte modo: o processo de humanização do ser falante se caracteriza pela inscrição no mundo dos símbolos. Lacan conceitua um elemento de auxílio no reconhecimento da relação do ser com ele mesmo e com os demais: o “Estádio do espelho”. Ao ver a totalidade de seu corpo refletida na imagem do espelho, o ser é capaz de apreender sua forma – que antes se confundia com o corpo do mundo, e diferenciar-se dele, apropriar-se, possuir a si próprio. É através desse processo de reconhecimento da imagem que se dá a constituição do “eu”; é através dele (e do olhar do outro) que a existência do sujeito se manifesta.

LAURA PAWELA, "Frames nr 80", 2015 | C-type print (21 x 29.7 cm
LAURA PAWELA, “Frames nr 80”, 2015 | C-type print (21 x 29.7 cm

A arte é um campo do simbólico capaz de expressar. Mas, por detrás desta obviedade, o que vem a ser “expressão” possui um sentido bem diverso do senso comum. A partir do final do século XVIII esse termo passa a ter o significado que lhe damos hoje, mas até então expressão significava a “conformação adequada a um padrão”: expressar-se “bem” era falar de maneira adequada conforme um padrão normativo dado. No século XIX há uma inversão radical: o termo passa a se referir à capacidade do artista em quebrar a regularidade da forma sem desestruturá-la completamente por meio de uma linguagem particular. Isso gera uma desestabilização da avaliação crítica, pois, se antes o julgamento da arte atinha-se à adequação da linguagem (ou da obra) a um padrão vigente, passou a ser justamente o contrário – a linguagem singular do artista criava suas próprias regras, abolindo a ideia de “padrão”.

A crença romântica na genialidade do artista criou um equívoco largamente difundido: o de que há uma essência prévia especial do artista que procura expressão. Mas o sentido original qualificava a expressão como possibilidade de exploração, aprofundamento e desenvolvimento formal. Expressão é a desestabilização da estrutura formal da obra, até o limiar de sua desarticulação – sem, no entanto perdê-la de todo, o que não faria sentido.

Se o objetivo das vanguardas fosse esgotar a forma para torná-la inútil, bastaria simplesmente que se abrisse mão dela a priori. Pois foi justamente isso o que a Academia fez: partiu do princípio de que a arte fora superada em seu âmbito formal, de que estava esgotada sua dimensão plástica (desenho, pintura, etc), e partiu daí para outras categorias artísticas (instalação, performance, etc). Esta é a conclusão pesadelar do fetichismo da “novidade pela novidade”.

GOLUCHO, "Último eco" | lápis e aguada (160 X 190 cm)
GOLUCHO, “Último eco” | lápis e aguada (160 X 190 cm)

Lemos uma boa síntese da relação “tradição x inovação” na tese de Nara Amelia Melo da Silva (2014)[1]:

Tomando como paradigma a concepção de Richards, de que todo poeta trabalha com uma linguagem herdada dando-lhe novas formas, Gombrich propõe que as tradições também estão implicadas no trabalho com o imaginário das artes visuais. Para o historiador, é um pressuposto para qualquer reflexão estética conhecer o lugar das convenções e tradições no processo de criação. (2012, p. 171) Conforme Gombrich, Richards constata que o uso que fazemos da linguagem é um débito que temos com o passado, com a tradição na qual ela se desenvolveu, com os “inúmeros representantes de nossa espécie, que, cuidando dos significados, desenvolveram a Mente desconhecida do Homem” (RICHARDS apud GOMBRICH, 2012, p. 182). Por esse motivo, Gombrich assegura que o processo de influência está necessariamente implicado na criação artística, seja escrita ou visual, embora muitas vezes a discussão da influência tenha sido evitada ou erroneamente associada ao plágio, ou “como se estivéssemos acusando um gênio de ter roubado ideias de um terceiro”. (GOMBRICH, 2012, p. 182) Discutir a influência no processo de criação é, para o historiador, considerar o uso que fazemos das convenções que são herdadas, que aprendemos através das tradições. Entendemos assim que todo artista passa por um processo de absorção de tradições e experiências, que o levará a se posicionar particularmente em relação a esse universo de referências, através da sua prática.  (grifo nosso)

Um dilema fundamental da Estética é a aparente dicotomia entre técnica e conceito. Quando um trabalho possui somente técnica, torna-se ciência exata; quando é apenas conceito, assume proporções de tratado acadêmico. Ambos os polos podem redundar no mesmo alheamento daquilo que conhecemos como arte. Mas para além do academicismo e da Arte Conceitual, o realismo contemporâneo a que temos aludido consegue de certa forma conciliar esses extremos. Unindo a tradição pictórica do desenho e da pintura às questões da contemporaneidade, logra alcançar a expressão daquilo que ainda não tem imagem, não tem figura – mostrando assim a ausência, a lacuna, o vazio daquilo que ficou por expressar, o qual passa a integrar-se ao repertório do nosso imaginário.

GOLUCHO , "Cuatro poses", 2004 | lápis e acrílico sobre papel (280 x 150 cm)
GOLUCHO , “Cuatro poses”, 2004 | lápis e acrílico sobre papel (280 x 150 cm)

[1] MELO DA SILVA, N. Alegorias do estranho. 2014. 298 f. Tese (Doutorado em Poéticas Visuais) – Instituto de Artes, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2014, PDF.

Informações sobre a Oficina:
http://wp.me/p4ZVe4-a6

Imagem da capa:

RÓMULO CÉLDRAN, “Abstracting I”, 2012 | lápis e acrílico sobre tela, tríptico (76 x 92 cm), (76 x 92 cm), (76 x 176 cm)

Primeira parte do conteúdo a ser ministrado na Oficina“FIGURA CONTEMPORÂNEA:  Técnicas tradicionais e Hiper-realismo” (Florianópolis | 23, 24 e 25 de Fevereiro | 2016) A expressão é o que possibilita a existência – é sua plataforma constitutiva e fundacional. Logo que expresso, passo a existir, uma vez que minha existência é “informada”, posta na fôrma da linguagem, tornando-se…

5 respostas para “FIGURA CONTEMPORÂNEA: A técnica do desenho e a ressignificação do Hiper-realismo”.

  1. […] Inscrições e informações clique aqui! Clique aqui para acessar o Programa completo! Clique aqui para acessar parte do conteúdo teórico! […]

    Curtir

  2. […] escuta, de diálogo, um ensaio vigoroso de alteridade. Escrevi acerca do tema em outros momentos (aqui, aqui e aqui), e neste post transcrevo meu texto de curadoria para FIGURATIVA – 1ª Feira de […]

    Curtir

  3. […] panorama atual da arte figurativa, temos apontado o movimento da figuração contemporânea como uma solução estética poderosa entre forma e conteúdo, fazer e re… Essa conjunção, capaz de dar sentido à experiência, tem potencializado o recurso experiencial […]

    Curtir

  4. […] da estética do Hiper-realismo Contemporâneo – corrente específica da Figuração atual que já tratamos aqui, onde enfatizamos sua característica mais promissora: a possibilidade de resgatar a condição da […]

    Curtir

  5. […] coordenadas da experiência para além da visualidade imediata – por onde certo “Real” inconsciente retorna (não é à toa que o movimento flerta […]

    Curtir

Deixar mensagem para [PROCESSOS POÉTICOS] QUARTA AULA | Poéticas da Figuração Contemporânea – GUSTAVOT DIAZ Cancelar resposta

Feature is an online magazine made by culture lovers. We offer weekly reflections, reviews, and news on art, literature, and music.

Please subscribe to our newsletter to let us know whenever we publish new content. We send no spam, and you can unsubscribe at any time.

Voltar

Sua mensagem foi enviada

Designed with WordPress.