A pintura é uma poesia silenciosa;
a poesia uma pintura que fala.
SIMÔNIDES, in Plutarco, em De Gloria Atheniensium (III, 346)
Nesta semana (21), encerra a FIGURATIVA | 1ª Feira de Arte Figurativa em Brasília, promovida pelo espaço Par de Ideias. Assino a curadoria da Feira, e no texto curatorial (aqui) exponho os princípios que regeram nossa escolha – tanto temática, quanto das obras selecionadas. Segue resumo do conteúdo da palestra e do curso que ministrei em Brasília como parte da programação da Feira – o mesmo conteúdo será ministrado em Porto Alegre (17/01 e 14/02/19) no MARGS, e em Florianópolis (março/19) no Sítio Coworking. Nosso desejo é abrir o diálogo em torno dessa produção, compartilhando algumas reflexões acerca desse movimento tão recente no Brasil e no mundo.

Enquanto a cor é capaz de representar a luz em seu contorno emocional, patológico (de pathos); o desenho simboliza a forma – esta, por excelência “discursiva”, “narrativa”. Expressando em si mesma a sua finalidade, a cor efetiva impressões imediatas geradas exclusivamente a partir de sua própria materialidade. Por exemplo, a cor vermelha desperta reações diferentes em cada pessoa, mas exige interação presencial: não se pode “relatar” a cor no intuito de gerar sensações num expectador que não a veja in sito. Os emocionantes vídeos da empresa Enchroma que têm circulado pela web expõem o valor eminentemente patológico, não-cognitivo da cor. (E o mesmo ocorre com a recepção do som que o implante coclear nos casos de surdez não definitiva possibilita).
De modo diverso, o Desenho pode ser objetivamente dirigido a uma finalidade para além, ou “fora” dele mesmo: seja construindo discursos ou contando uma história. Pelo fato de corresponder à natureza do memento – daquilo que passou e é passível de simbolização, o Desenho atua como um “dispositivo narrativo” mobilizador de sentido para a experiência (concepção que tem sido norteadora em nossas formulações).

E se o Desenho aciona enredos narrativos por meio do discurso visual, em seu processo estão imbricadas tanto as experiências do artista e do espectador, quanto os próprios sujeitos de tais experiências – fato que transforma o Desenho em um “articulador simbólico”. Esse complexo constituinte da imagem é próprio do universo dos símbolos, cuja retórica visual, e suas experiências correspondentes, organizam a experiência do sujeito no meio social.
Figuração X Abstração
Um marco histórico essencial para compreensão dessa propriedade discursiva são os experimentos que o arquiteto florentino Filippo Brunelleschi (1377/1446) realizou no início do século XV – os quais, não por acaso, ajudaram a vertebrar o pensamento renascentista, uma vez que resultaram no estabelecimento da “perspectiva”.
O experimento mais impressionante de Brunelleschi até hoje elucida quanto ao funcionamento do olhar: sentado à porta da Catedral Santa Maria dei Fiori, Brunelleschi pintou o Batistério de Florença (o qual via bem diante de si) em um painel. Com um estilete, fez um furo no exato lugar do painel onde se situava o “ponto de fuga” do desenho. O experimento consistia em pedir que alguém olhasse a tela não diretamente, mas a partir de sua imagem refletida no espelho, mirando através do buraco no verso da pintura (imagem acima). O que se tinha então não era apenas uma pintura: era a experiência de que o espectador estava diante do próprio Batistério de Florença real. Se o experimento fosse realizado em Roma ou qualquer outra cidade, a impressão do observador seria a mesma.

Concebida por Brunelleschi nas primeiras décadas do século XV, a perspectiva foi o sistema matemático até então mais eficiente de emulação da visão. Esquematizando coordenadas de orientação da visão para uma experiência de realidade específica, ela trazia à tona o aspecto ficcional presente na própria estrutura da experiência. A impressão “realista” gerada pela perspectiva replicava o mecanismo editável da experiência visual, revelando assim que nossa experiência de realidade é formada por coordenadas puramente simbólicas[1]. Esse, aliás, é o fundamento da célebre formulação do psicanalista Jacques Lacan: “a verdade tem estrutura de ficção”. O Desenho mais realista não é aquele que “representa exatamente como a coisa é” (até por ser impossível o registro definitivo do real): desenho realista é aquele que manipula as coordenadas simbólicas, de modo a criar experiência de verossimilhança.
Assim, a perspectiva de Brunelleschi marca a introdução da experiência no campo artístico ao pressupor – talvez pela primeira vez na modernidade – um “sujeito da experiência”, capaz de corporificar a subjetividade moderna e ver o mundo a partir de um ponto de vista único e pessoal. O passo imediato foi perceber que, induzindo experiências, a perspectiva orientava percepções e modos de pensar (tanto do artista, quanto do expectador).
A CIA e a Guerra Fria cultural
Tal sistema sofreu transformações até o final do século XIX, quando então deixou de ser validado unanimemente. Uma reação contra a perspectiva ilustra bem como a dimensão narrativa era absolutamente consciente e ainda disputada no último século. Entre os anos de 1945/55, a perspectiva ortogonal passou a ser negligenciada pelo movimento norte-americano concebido pelo crítico Clement Greenberg e materializado na obra de Jackson Pollock: o Expressionismo Abstrato. Greenberg voltara-se justamente contra a “experiência orientada” do Desenho e da figuração (que ele chamava “ilusionista”), pleiteando em seu lugar uma suposta “integridade do plano do quadro”[2].

Não por acaso, o Expressionismo Abstrato teve sua primeira e mais forte expressão nos Estados Unidos, precisamente durante a deflagração da Guerra Fria – quando as políticas culturais norte-americanas priorizaram o combate ao comunismo propagandeado pelo Realismo Russo e pelo Muralismo Mexicano (este último nas barbas dos EUA). A campanha institucional de promoção do abstracionismo financiada largamente pelo governo norte-americano, mais do que uma manifestação estética, era uma estratégia cultural da CIA que visava combater a arte abertamente politizada da esquerda com outra, “politicamente silenciosa” e “ideologicamente neutra”, que divulgasse os ideais capitalistas do ocidente. Tal estratégia fez do Abstracionismo a expressão mais puramente ideológica da história da arte moderna:
“Para eles, o expressionismo revelava especificamente uma ideologia anticomunista, a ideologia da liberdade, da livre iniciativa. Sendo não figurativo e politicamente silencioso, ele era a própria antítese do realismo socialista”. (SAUNDERS, p. 281)
É importante lembrar que “ideologia” não é defender uma causa explicitamente, seja ela qual for; mas justo o contrário: calar a defesa de uma causa através de estratégias supostamente “neutras” ou “imparciais” (no Brasil, o projeto de lei “Escola sem Partido” foi o exemplo mais grotesco de atuação ideológica na política). O livro A CIA na Guerra Fria da cultura (Record, 2008), da jornalista inglesa Frances Stonor Saunders trata do tema de forma ampla e profunda, com extensa indexação de fontes (compartilho aqui versão integral para download).
O que explica a perseguição ao Realismo durante a Guerra Fria é sua capacidade de “análise discursiva”: através dele, se podia “contar histórias”. Evocando em palavras os acontecimentos e encadeando-os na forma de enredo, a figuração alcançava a construção de “representações” que animavam o imaginário dos espectadores. O Muralismo Mexicano, profundamente referenciado no povo latino, com forte ressonância política, criava um sentimento de identificação imediata com seu público. Em síntese, os mexicanos olhavam para os painéis e pinturas de Diego Rivera, José Orozco, David Alfaro Siqueiros e Frida Kahlo e compreendiam sua própria historicidade através da retórica visual das pinturas. Os murais “contavam algo”, com objetivo claro e expresso de socializar saberes de povos originários e de análise sociológica, criando consciência política contra a dominação ianque.

Em oposição, o Abstracionismo de Pollock passava a ser o horizonte final onde o discurso e a literalidade eram decisivamente desintegrados em nome de uma experiência patológica (emocional) paralisante que não conduzia a nenhuma reflexão crítica acerca do momento político – o que justifica o apoio do MoMA, o gerenciamento da CIA, e sobretudo os subsídios milionários do senado norte-americano. O incentivo orquestrado ao abstracionismo no período foi tal que mobilizou meia centena de artistas figurativos nos EUA, liderados por Edward Hooper, a organizarem uma resistência conhecida como “Manifesto da Realidade”, onde se critica o totalitarismo da preferência oficial pela estética da abstração.
Malevich e a abstração consequente
Sem esquecer das obras revolucionárias de Manet e Cézanne – primeiras desestabilizações do sistema renascentista de representação do espaço, o estiramento formal em busca da superação da perspectiva brunelleschiana na arte foi de fato realizado de maneira radical (e da forma mais consequente) já no início do século XX – décadas antes de Pollock. Foi o suprematista russo Casemir Malevith quem efetivou a síntese mais extrema dos elementos da visualidade, eliminando a contradição figura-fundo com suas famosas séries de quadros brancos sobre fundos brancos e pretos sobre fundos pretos. Planos que deveriam se opor para criar efeitos de profundidade, são chapados na bidimensão do quadro, radicalizando assim a perspectiva a sua mínima expressão. Malevich tinha perfeita consciência da problemática que sua obra levantava no que toca à profundidade espacial, chegando a redigir em 1925 o manifesto Do Cubismo ao Suprematismo (junto do poeta Vladmir Maiakovski), além de outros trabalhos teóricos.

A busca do Suprematismo era por uma independência quanto à tutela e as formas burguesas de arte, que conduzisse a um fazer autônomo e potente. Justamente devido a esse aspecto (essencialmente diferente em relação à abstração de Pollock), e por ser um legítimo defensor da liberdade artística, Malevith foi perseguido por seu correspondente Estado totalitário (no caso, o stalinismo, que adotava o Realismo Russo como propaganda oficial). Preso e torturado, sofrendo perseguições sistemáticas da imprensa oficinal, veio a morrer na pobreza em 1935, caindo no esquecimento por quase meio século.
A par do trabalho experimental de Malevich, e inspirado também nas obras de P. Klee e V. Kandinsky, o músico John Cage empreendeu no campo da música uma pesquisa semelhante, orientando-se mais ou menos pela seguinte pergunta: “se o quadro branco é pertinente ao vazio na formatividade das artes visuais, qual seria seu correspondente na música?” Para tentar responder, Cage procurou o “oposto do som”. Suas pesquisas o levaram ao confinamento numa câmera anecoica (aquela usada para treinamento de astronautas, onde a atmosfera é eliminada) a fim de ouvir o “não-som”. Uma vez trancado lá dentro, o músico ouviu o som característico do próprio batimento cardíaco. Foi então que compôs a sinfonia 4’33” (1952) – ainda hoje representada por orquestras do mundo todo, constituída por quatro minutos e meio de silêncio.
Tais experimentos dão a noção de que, muito mais que um dispositivo ilusionista (como pensava Greenberg), a perspectiva, enquanto fio condutor da narratividade, é capaz de criar um discurso visual articulador de experiências, mobilizando afetos e consciência crítica.
Figuração Contemporânea: o recurso à Psicanálise
Para compreender essa propriedade do Desenho, analisamos desde a formação da palavra designare, onde já aparece um caráter de enunciação representativa. Sua etimologia quer dizer “marcar, apontar, traçar por fora, no entorno”, sendo que o núcleo morfológico signare (de signum: “sinal”, “marca”) atribui ao desenho a função de assinalar, marcar com um sinal; nomear os fenômenos.

Antevemos aí uma dimensão psíquica na qual o Desenho desempenha a inscrição simbólica dos objetos, emoções e percepções do sujeito – atributo que curiosamente comparece no mito de surgimento do Desenho, tal como descrito por Plínio, o Velho[3].
Este historiador latino relata como a lendária Cora, filha do oleiro Butades, risca em uma parede o contorno da sombra de seu amado, que em breve partiria para o estrangeiro. Butades, então modela em argila a cabeça do genro, tendo como referência o contorno da figura traçado por Cora – a qual encontrava assim uma forma de simbolização que a colocava em presença da ausência do amado por meio de um “sinal”, um traço capaz de evocá-lo. Essa função mítica do desenho é constitutiva da representação, garantindo a capacidade de “simbolizar” – propriedade geradora matriz da experiência.
No panorama atual da arte figurativa, temos apontado o movimento da figuração contemporânea como uma solução estética poderosa entre forma e conteúdo, fazer e reflexão, síntese plástica e elaboração conceitual. Essa conjunção, capaz de dar sentido à experiência, tem potencializado o recurso experiencial da imagem, especialmente porque a relação entre esses artistas e a fotografia, os softwares de edição de imagem e o mundo virtual, não está mais a serviço de uma “cópia duplicada” do real que simule experiências. O que está em jogo não é a réplica do fenômeno da imagem enquanto aparência e mimese – mas a criação de um “real mais real do que o real”, capaz de desencadear efetivamente experiências ao unir estímulo estético e direcionamento narrativo.

Para analisar tudo isso, emprestamos alguns conceitos-chave da psicanálise – em especial a de orientação lacaneana, devido ao papel central que sua teoria atribui à imagem. As produções figurativas a que nos referimos (algumas das quais podem ser conferidas nesse artigo) incorporam a resiliência do simbólico, a desfiguração plástica da figura que (para o sujeito) constitui processos identitários e as coordenadas da própria realidade. A experiência “mais real que a realidade” não é outra, senão aquela sustentada pelo sonho ou pelo imaginário – que procura dar expressão e substância a nossa realidade mais profunda.
“Emulando coordenadas da experiência” para além da visualidade imediata – por onde certo “real” inconsciente retorna (não é à toa que o movimento flerta continuamente com o Surrealismo) – a nova figuração tensiona o campo da representação, sem desagregá-lo formalmente. O curto-circuito entre a “representação” realista e a deformação brutal operada pela edição da imagem (edição presente em todas as etapas do processo artístico) faz da imagem novamente um campo de discussão acerca do presente. Nesse sentido, a Psicanálise subsidia a compreensão da imagem, por exemplo, como constitutiva do sujeito (enunciado por Lacan no conceito “Estádio do espelho”), ou explicando o processo de “inscrição simbólica” – o qual, conforme vimos, é operativo da experiência.

BIBLIOGRAFIA SUGERIDA:
ALLOA, Emmanuel (org). Pensar a Imagem. Editora Autêntica, Belo Horizonte, 2015.
AUERBACH, Erich. Mimesis. São Paulo: Editora Perspectiva, 1976.
BARRETO, Gilson; OLIVEIRA, Marcelo de. A Arte Secreta de Michelangelo: uma Lição de Anatomia da Capela Sistina. São Paulo, ARX, 2004.
BECCARI, M. Articulações Simbólicas: Uma nova Filosofia do Design. Teresópolis, 2AB Editora, 2016.
CRARY, J. Técnicas do observador: visão e modernidade no século XIX. Rio de Janeiro: Contraponto, 2012.
DUNKER, C. & RODRIGUES, L. Cinema e Psicanálise (vol. 2). nVersos, São Paulo, 2015.
FOSTER, H. O Retorno do real, São Paulo, Cosac Naify, 2014.
KLEIN, Naomi. Sem Logo: A tirania das marcas em um planeta vendido. Rio de Janeiro: Editora Record, 2002.
WALKER, Paul Robert. A Disputa que mudou a Renascença: como Brunelleschi e Ghiberti marcaram a história da arte. Rio de Janeiro: Record, 2005.
SAFATLE, V. Introdução a Jacques Lacan. Belo Horizonte, Autência Editora, 2018.
SANT’ANNA, Affonso Romano de. Desconstruir Duchamp. São Paulo: Vieira & Lent, 2003.
____________. O Enigma vazio: impasses da arte e da crítica. São Paulo: Rocco, 2008.
SAUNDERS, Frances Stonors. A CIA na Guerra Fria da cultura. Record, 2008.
VALÉRY, Paul. Degas Dança Desenho. São Paulo: Cosac Naify, 2015.
ŽIŽEK, Slavoj. Como ler Lacan. Rio de janeiro: Zahar, 2010.
[1] Brunelleschi parece ter tido consciência do nível de edição a que a experiência é sujeita: além do experimento citado, há notícias das peças que pregava em amigos, tecendo um complexo cenário de mentiras para criar sensações verdadeiras de falsas realidades – como o caso do “gordo marceneiro”, cuja vida é de tal modo manipulada por eventos fictícios criados por Brunelleschi, que acaba ele convencido de ser outra pessoa. Ainda sobre a perspectiva ser uma edição, vide: E. PANOFSKY, A perspectiva como forma simbólica, Lisboa, Edições 70, 1999.
[2] No livro A Palavra Pintada (L&PM, 1987), o escritor Tom Wolfe, por meio de anedotas, mas de forma muito interessante como se deu a relação entre o artista Pollock e Greenberg, o crítico de arte que passou a orientar in loco a produção.
[3] No capítulo 12 do livro XXV da sua História Natural (77-79).
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capa | NICOLA SAMORÌ, “Nubifregio“, 2010 | óleo sobre placa de cobre
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