Um antigo mito dá conta de explicar a origem da pintura no mundo clássico. Esse mito assinala uma dimensão intelectiva da prática, sugerindo que uma episteme do fazer manual já estava presente no DNA das artesanias. No capítulo 12 do livro XXV[1] da sua História Natural (77-79), Plínio, o Velho conta a lenda de Cora (filha do oleiro Butades da cidade de Sicião) que risca em uma parede o contorno da sombra de seu namorado, que em breve partiria para o estrangeiro. Butades então modelou em argila a cabeça do genro, tendo como referência o contorno traçado pela filha. Veja na galeria algumas imagens representando essa cena:
Veremos que todo desenho carrega um resquício deste gesto fundacional, desde a formação latina da palavra Desenho. Oriunda de “designare” (cujo núcleo morfológico quer dizer “marcar, apontar, traçar por fora, no entorno”) e signare (de signum – “sinal”, “marca”) sua etimologia carrega o sentido da “marca”, evocando a linha que Cora desenhou no entorno da sombra do namorado.
Esse recurso etimológico sugere também o “desenho” como sendo o risco, ou traço que contorna um objeto; e que o assinala. Ao transformar um objeto em “signo”, o desenho o registra em forma, e opera uma substituição: a troca da presença do objeto por um signo indicativo. Deduzimos nisto uma relação intrínseca com desígnio: aquilo que se “aponta” ou “projeta”, cuja realização está no devir (não se manifestando de imediato). Em termos práticos para o desenhista: toda linha deve ser construtiva, esquemática, rítmica, apenas indicativa do sombreamento que virá depois, a posteriori.

Outra compreensão bastante esclarecedora é a relação com a palavra desejo. Derivada do italiano desiderio (esperar por, ter expectativa, exigir) é composta da partícula “de” – referente a um movimento descendente (de cima para baixo, como “decantar”, “decapitar”, etc), somado ao complemento “sidĕrĭvm” (“estrela”, “astro”, “sideral”). O termo sideratus (siderado) define alguém fulminado por um astro, e revela a influência dos astros sobre nós – do mesmo modo, quando o sujeito se encontra perdido, põe-se a “considerar” (con = junto + sidus = estrela).
Essa consulta aos astros em situações de impasse é comum desde a antiguidade (pense no Horóscopo hoje em dia). Entretanto, há um momento na vida de completo desespero, momento em que sequer consideramos a ponderação das estrelas: este é o momento do desiderare – quando nos encontramos “sem os astros”[2]. Tal origem do vocábulo “desejo” fora provavelmente usado no passado também para nomear o fenômeno da “queda de estrelas” no céu; e talvez por isso o costume de se emitir um desejo (ou “fazer um pedido”) quando se presencia uma estrela cadente.
Olhar ≠ Visão
A fim de compreender a dimensão demandante da psique humana, o psicanalista Jacques Lacan recorreu oportunamente à etimologia do termo desejo, compreendendo que este sugere algo mais do que apenas querer algo: desejar é um momento “sem coordenadas”, um instante de constatação e de convívio com a falta (lembrando que, na antiguidade os astros davam a localização, as horas, e guiavam as jornadas).
É aqui que desenho e desejo se encontram: o desenho é também experiência da ausência, tentativa de presentificar aquilo que está ausente – o que de novo remete ao mito de Cora, que recorre ao desenho na intenção de preservar um traço do amado que partiria.
Tendo o sentido original do Desenho essa espécie de captura de um objeto faltante através da marca de seu contorno, “sinal” ou “traço” distintivo (como um corpo que afunda no cimento seco deixando ali o negativo da forma), Desenho e desejo se aproximam, conforme vimos na acepção psicanalítica, sendo ambos diferentes modos de nos colocar diante da falta (é preciso lembrar que a imagem de alguém indica justamente sua ausência).
Há, entretanto, outras faces desta relação. Se “o inconsciente é estruturado como linguagem” por meio da ação significante – conforme a interpretação de Lacan, podemos aproximar o ato de simbolização operado no desenho à própria organização psíquica do sujeito, constituída por meio da imagem. São, aliás, bastante comuns experimentos de comunicação com clinicandos por meio de imagens, usadas como recurso à expressão inconsciente ou instrumento de elaboração de conflitos não verbalizados.

Esses paralelos entre Desenho e conteúdos da psicanálise são frutos da noção, já bastante difundida, de que o olhar não coincide com a visão. O olhar depende de referentes (disponíveis na linguagem simbólica) que identifiquem e qualifiquem a luz que a visão recebe. Noutras palavras, a “visão” (enquanto aparelho do sentido físico) é responsável apenas pela captação orgânica dos raios luminosos – sempre condicionada à memória visual e à sensibilidade balizada pelas experiências do sujeito.
Assim como o filme não está no que a câmera capta, mas sim na edição presente na consciência do diretor, nossa visão através das retinas são ferramentas para que o cérebro crie um campo de realidade visual autônomo – que não é produto final do olhar, mas apenas fornece a ele estímulos sensoriais. Em síntese: a visão é produto do imaginário, e não o contrário. Em outras palavras, vemos o que já conhecemos anteriormente; assim é que o conceito vem antes da imagem. É a essa educação visual (muito mais do que à mera aplicação de técnicas) que devem se destinar os verdadeiros cursos de Desenho.
Outro paralelo que expõe a distinção entre o funcionamento biofisiológico da visão e a percepção imaginária é a perspectiva. Ela é uma deformação estruturante do espaço percepcionado, que confere sentido a sinais luminosos controversos. Usando o fácil exemplo dos trilhos do trem: a distância impede que os raios luminosos do final cheguem até mim, resultando que a visão, por conta da superfície parabólica da retina, aproxima os trilhos de forma que pareçam se encontrar na linha do horizonte. Isso cria uma realidade estranha em nossa imaginação, posto que trilhos absolutamente paralelos (| |) na realidade física se tornam convergentes no campo de visão ( / \ ).

O que o olhar faz é organizar objetos e eventos em ficções imaginárias, visando dar sentido à dimensão em si mesma absurda e ininteligível do “real”. As repetições incessantes, os casos sem causa visível, os fragmentos surreais que compõem a realidade mais imediata do cotidiano são organizados pelo olhar, o qual atribui uma ordem inteligível ao que no mundo é disperso em fenômenos cujas causas não são imediatamente perceptíveis. Quando olhamos a cidade através de uma janela, o quadro pareceria absolutamente caótico – carros e seres aparecendo e desaparecendo sequencialmente por detrás do vidro, ruídos e vozes desconhecidas, etc. Caso não atribuíssemos sentidos e explicações a ele (sentidos que estão fora do campo imediato da visão, e que são, por isso mesmo, imaginários) a realidade seria insustentável psiquicamente.
Assim é que, por meio da perspectiva, o olhar deforma os objetos no intuito de vê-los sob uma forma compreensível. No Desenho, a perspectiva é um recurso geométrico que não representa os objetos de maneira realista. É justamente o contrário: ela deforma o real a fim de torná-lo verossímil, permitindo ao observador compreender o que se passa por meio de um ordenamento estável da experiência.
No limite, o que vemos são crenças, ou “ficções simbólicas”: a verdade plena não pode ser alcançada, senão sob uma estrutura ficcional – como afirmou Lacan, querendo dizer que nosso desejo (que é a relação com a falta) constrói uma “anamorfose” que atua como sucedâneo para nossa interação com a realidade factual. Essa anamorfose é um substituto com o qual nos relacionamos de forma precária, mas possível, visto que o Real em si mesmo (compósito de traumas, medos, anseios, desejos inconfessáveis que definem nossa constituição subjetiva) é uma dimensão insuportável para o sujeito.
Desenho como “experiência visual”
O desenho nunca aparece sozinho, abstratamente. Está sempre intrincado numa equação bastante clara: OLHAR – MODELO – DESENHO[3]. Infelizmente, as preocupações mais corriqueiras dos desenhistas oscilam apenas entre os dois últimos: “modelo” (o corpo em sua dimensão formal, anatômica, etc) e “desenho” (o ferramental técnico dos materiais expressivos e procedimentos relacionais da forma).
Embora esses dois eixos de conhecimento forneçam um aparato imprescindível de interpretação e codificação plástica da figura, quando se desconsidera o elemento “olhar” (justamente o que possibilita ver ou não), o aprendiz fica sem o contraponto que responde à principal questão do Desenho: o que desenhar?
Isso explica a despersonalização das produções iniciantes. Essas, normalmente muito parecidas entre si e sem fundo conceitual, replicam acertos e multiplicam erros, reproduzindo impensadamente estereótipos e soluções frágeis, sem criatividade. Um bom desenho demanda criação – tanto plástica, quanto conceitual; não apenas reprodução. O Desenho precisa ser compreendido não comente como um produto da “visão” alcançado por meio da técnica; ao contrário, Desenho é aquilo mesmo que possibilita “ver”, na medida em que articula experiências visuais. Manipulando coordenadas simbólicas indutivas da percepção, ele estrutura narrativas ficcionais que mobilizam modos de agir e de pensar. Nossas reflexões (que em breve serão editadas no livro “Manual do Desver”) propõem uma compreensão na qual o Desenho, enquanto desígnio (considerando suas relações com desejo e imaginário citadas no início do texto), fala uma língua dupla, ambígua, ao mesmo tempo presente e futura.

Trata-se de uma experiência presente quando o desenhista sofre a experiência visual da observação direta do modelo, interpretando visualmente as coordenadas visuais (síntese plástica). Nesse momento é preciso passar efetivamente pela experiência. Contudo, Desenho é também linguagem do devir: cria uma experiência futura ao expressar no papel coordenadas visuais que guiarão o olhar de um expectador ainda não revelado (nem é preciso dizer que é esse segundo olhar que institui a obra artística). Aqui ele opera enquanto desígnio e desejo, presentificando por meio da atividade simbólico-material os meios de compartilhamento da experiência.
Essa dupla experiência que o Desenho verbaliza é oriunda já de uma condição paradoxal que lhe é constitutiva: ou eu desenho (e nesse momento olho para o papel), ou eu olho para o modelo (e nesse momento não desenho). Essa simples e inevitável situação coloca o Desenho como articulador entre aquelas duas experiências: a que o próprio desenhista passa no momento em que vê o seu modelo; e outra, a qual deverá criar no olhar do expectador.
Perspectiva = “ver através”

Essas disposições são de ordem ficcional, uma vez que derivam de um artifício que parece realista justamente na proporção em que é forjado: a perspectiva (palavra que significa ver através de, proveniente de perspicere, e significa aquilo que me permite ver, aquilo por meio do qual enxergo). É preciso que algo nos possibilite a ver a fim de que enxerguemos. E esse algo não é o olho (visão), mas o olhar: o fenômeno de percepção que o Desenho manipula, dando condições a que a visão se processe.
Apenas no século XV, em conexão com a noção de “subjetividade”, se produziu o recurso desta técnica que assumia o intuito de simular o olho humano a partir de um ponto de vista fixo, compondo assim o núcleo da experiência, uma vez que esta demanda sempre um “sujeito da experiência”. Os objetos da visão provém de como são vistos, ou seja, dos instrumentos de representação disponíveis em uma época (os quais operam pari passu aos regimes de visualidade)[4].
Criada por Filipo Brunelleschi, a perspectiva fora o sistema matemático até então mais eficiente de emulação da visão. Baseando seus experimentos na Geometria, isto é, numa ciência convencionada (portanto, idealizada) foi durante muito tempo capaz de criar experiências “realistas”. Essa realidade “ficcional” é o que garante a sua contundência: assim como o cinema contemporâneo, o sistema de Brunelleschi era capaz de emular as disposições editáveis da própria experiência porque esta mesma é guiada por coordenadas puramente simbólicas. Daí que a verdade tem estrutura de ficção: o Desenho mais realista não é aquele que representa exatamente “como é” a coisa, até por ser impossível um confronto com o real e seu registro definitivo. Desenho realista é aquele que manipula o real, de modo a fazer com que pareça verossímil, onde o desenhista necessita deformar a realidade para convencer o espectador de que seu modelo é real.
Oferecemos também os cursos

WORKSHOP: “Desenhando o corpo humano em uma aula”. Dia 06 de Julho (Sexta, das 14h às 18h30) LOCAL: A definir | Porto Alegre

WORKSHOP “Figura Contemporânea” Período de 29 de Junho a 01 de Julho (Sexta, Sábado e Domingo) LOCAL: MÍMESIS Conexões Artísticas | Curitiba
[1] Também no capítulo 15 do Livro XXXV, o mesmo Plínio menciona que a pintura foi inventada “quando se circunscreveu a sombra humana com traços”.
[2] Fonte: http://revistapercurso.uol.com.br/pdfs/p08_texto06.pdf
[3] Embora essa equação tenha sido seriamente questionada pela reflexão pós-moderna, ela se perpetua, mais ou menos no sentido tradicional, com a substancial diferença de que as relações entre os seus elementos são muito mais complexos.
[4] Para desenvolvimento mais profundo do tema, consulte Jonathan Crary CRARY, J. Técnicas do observador: visão e modernidade no século XIX. Rio de Janeiro: Contraponto, 2012.
imagem da capa | BRUNO WALPOTH, escultura em madeira
Olá.
Amo rsse tema. Esto pesquisando arte e saude. Tenho interesse em saber mais. Obrigada por compartilhar.
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Oi Gustavot, adoro seus textos e sempre fico surpresa como alguns conteúdos/referências nos unem em sincronicidade, mesmo que estejamos distantes…desde as leituras de Degas Dança Desenho até as relações entre desenho, desejo, olhar (e a analista mandando lembranças hehe =). Aliás, tenho voltado a desenhar aos pouquinhos, depois de…no mínimo 1 ano para(lisa)da. Um beijo bem grande de saudade. <3
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Que bom receber teu retorno Camila! Que bom que nos acompanhas via web e via inconsciente coletivo… Rsss
Saudades também querida! Beijos, G
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