O Desenho como experiência visual (parte II)

No artigo anterior propus uma compreensão do Desenho como ferramenta capaz de emular coordenadas que efetivam a “experiência”. Essa capacidade garante que a atividade desenhística estabeleça diálogo intersubjetivo (entre o desenhista e o observador) na medida em que opera uma mediação entre a experiência visual do primeiro (quer dizer, a experiência por que passa o desenhista ao desenhar o modelo) e aquela futura, gerada no observador quando este se depara com o desenho finalizado.

Codificando a experiência visual em termos plásticos, a ação de desenhar pode ser entendida como uma operação de “por em linguagem” ou “metabolização da experiência em forma” (organizada em formulações) – remetendo-nos à função de simbolização presente no campo analítico (espaço onde significados são gerados na clínica). O recurso aqui à Psicanálise não é casual: ele ajuda a entender os processos de registro e formação simbólica realizados nessas trocas experienciais. Além do que, tratando do “lugar/olhar” do sujeito, a Psicanálise esclarece quanto ao elemento fundante do trinômio ao qual o desenho pertence:

desenho modelo triádico, articulação desenhistaO Desenho é sempre um produto dessa equação, na qual um termo cria o outro, dialeticamente. Como dissemos em outros artigos, o desenho está no olhar, locus onde se processa a síntese visual. Deste modo, quem desenha (por meio da visão) cria seu modelo, transformando-se a si mesmo em desenhista num processo de conquista do olhar. Explicando de outro modo: uma vez que o contato entre o observador e o modelo em potencial gera a experiência capaz de transformar a visão pura em olhar, o desenho então (aqui enquanto “expressão plástica”, ou “formulação em síntese visual” – quer dizer, o pedaço de papel desenhado) o desenho é vetor que transforma o observador em desenhista – quando este é capaz de expressar em linguagem visual aquele olhar desenhante. Nessa articulação, se o desenhista forja a existência do modelo (que de outro modo não existiria, pois só existe no momento em que o olhar repousa sobre ele), o desenho cria também o próprio desenhista (a experiência visual é formada pelo arco entre desenhista e modelo).

ANA TERESA FERNANDEZ,
ANA TERESA FERNANDEZ, “Erasure” (performance documentation) | óleo, 2016

Na Idade medieval, esse trinômio não existia, em sumo pela inexistência do “artista”, ou melhor, de um sujeito ou mesmo de uma subjetividade particular constituída (no sentido moderno do termo) capaz de ver e representar o mundo a partir de um único ponto de vista. Por essa razão, na Idade média a existência de modelos objetivos, empíricos, era interditada. Enquanto a mimese não fosse um valor a ser alcançado, a representação seria pautada em cânones de um repertório religioso predeterminado. Mesmo quando começa a  livrar-se do cânone, o artista responde ainda a todo um vocabulário de gestos, poses, indumentárias – uma gramática de significados simbólicos.

Somente na Renascença, quando alterações profundas transformaram o regime de visualidade dando condições ao surgimento do sujeito moderno, os componentes do trinômio Desenhista/artista – Modelodesenho/obra foram substantivados, passando a vertebrar todo o fazer artístico até o final do séc. XIX, momento esse em que passam a ser profundamente questionados. A filosofia pós-estruturalista (pós 1970) parece tê-lo posto em xeque, com importantes efeitos teóricos que deslocaram os lugares ocupados pelos elementos na tríade, chegando eventualmente a pulverizá-los. No entanto, ela ainda continua em operação – mesmo que em sentido bastante diverso de seu contexto original. No começo de nosso século, os termos puderam ser relativizados, “adequados” à orientação contemporânea, sem perder a eficácia, e permanecem atuantes na realidade cotidiana da arte – sobretudo no Realismo Contemporâneo, cuja vitalidade e potência advêm da renovação deste modelo triádico.

Por esta razão, nos parece ainda válido a utilização dessa estrutura, ressignificada pela ótica psicanalítica,  que assim nos possibilita entender o Desenho enquanto fenômeno de articulação simbólica, capaz de processar experiências em linguagem (visual).

Linguagem

ANA TERESA FERNANDEZ,
ANA TERESA FERNANDEZ, “Erasure” (performance documentation) | óleo, 2016

Devido a sua natureza representativa, o desenho “realista” é capaz de emular coordenadas que produzem experiências, proporcionando um recurso sofisticado de expressão com que o sujeito se habilita na constituição de linguagem. O domínio da técnica e de seus procedimentos metodológicos (a chamada “cuccina”) – em si mesma uma plataforma de simbolização, coincide com nossa demanda pulsional por elaboração de conteúdos mentais e emocionais.

Em síntese: se possuo recursos expressivos (domínio técnico), consigo elaborar com maior precisão ideias e sentimentos uma vez que a própria técnica é em si mesma um recurso de criação experiencial. Tomando de empréstimo seus expedientes metodológicos, logro expressar meus próprios conteúdos subjetivos. E quanto maior o domínio técnico, maior o alcance e profundidade da expressão – a qual existe apenas no esteio da linguagem.

O mesmo se dá a exemplo de uma língua estrangeira: se a conheço pouco, tenho menor possibilidade de me expressar através dela e fico então sujeito a tecer frágeis relações intersubjetivas com os falantes de tal língua (portanto, com meu próprio entendimento no que concerne a cultura daquele país). Daí que o aprendizado da técnica figurativa do desenho garante expressão mais eficiente de nossas intenções.

E do mesmo modo que o aprendizado da norma culta da língua não garante expressão plena (em algum momento necessito abandonar o vernacular e lançar mão da gíria, da expressão corporal, dos gestos, etc. para dar conta de expressar tudo o que quero), no desenho também a simples, pragmática e mecânica aplicação dos princípios técnicos não logra necessariamente eficácia estética. (Aqui é bom lembrar-nos de um pressuposto da psicanálise lacaniana: de qualquer maneira, a expressão nunca será plena, sempre haverá uma lacuna entre o que sou e a linguagem).

Paralelos entre o olhar e a Psicanálise

ANA TERESA FERNANDEZ,
ANA TERESA FERNANDEZ, “Erasure” (performance documentation) | óleo, 2016

A ótica psicanalítica nos mostra ainda outras intersecções entre a forma operacional (técnica) do Desenho e a percepção. Uma delas tem a ver com a perspectiva – sistema criado por Brunelleschi a partir de experimentos que simulavam o funcionamento da visão (aqui no sentido fisiológico da sensibilização da retina pela luz). Esses experimentos evidenciaram que a perspectiva ortogonal (que sistematiza os efeitos da deformação do campo visual) desperta a mesma sensação de profundidade experimentada pelo olho humano à distância.

Conclui-se daí que a perspectiva no Desenho é, afinal uma deformação necessária para que a visão ocorra, já que a própria visão funciona a partir de uma deformação; portanto, não podemos ver a realidade em si mesma, sem esse efeito de escorço (perspectiva). Em termos práticos: o desenhista precisa alterar a realidade daquilo que vê a fim de torná-lo “verossímil”.

Como informa a teoria psicanalítica de Lacan, percebemos a realidade através de uma espécie de anamorfose: uma deformação involuntária causada por nossos desejos que nos dá, em troca da percepção do real, certa “aparência” dele (chamada registro simbólico). Uma imagem que ampara esta compreensão é a do homem invisível: para encontrá-lo, basta jogar um lençol sobre ele. O lençol aqui é a rede simbólica que informa onde o real está, evidenciando a sua forma. No entanto, não é como se nossos desejos nos cegassem, alterando a realidade para que ela caiba em suas coordenadas caprichosas. Ao contrário, para Lacan, o Real está justamente na inconsistência da tessitura das redes simbólicas criadas para se poder vê-lo. Ou seja, o Real não é causa do simbólico, mas aparece como efeito de suas fissuras (como afirmava Freud a respeito do inconsciente, o qual só aparece nos chistes, nos sonhos e atos-falhos).

Em paralelo a esta condição psíquica (que nos apresenta uma realidade deformada), sem a qual nossa percepção da realidade não funciona, a própria visão humana de saída impõe também uma deformação. Deste modo, conclui-se que não existe uma visualidade “para além” da perspectivação: a própria realidade é um efeito involuntário desta distorção.

“A essência da comunicação é o mal-entendido”

ANA TERESA FERNANDEZ,
ANA TERESA FERNANDEZ, “Erasure” (performance documentation) | óleo, 2016

Concluiremos apresentando outra das inúmeras relações entre as condições da visão e a Psicanálise. Esta lança nova luz acerca do fundamento sobre qual repousa toda expressão artística: a comunicação. Dissemos no início que o Desenho opera mediações experienciais entre o desenhista e o espectador, e que essa troca de experiências resulta num diálogo intersubjetivo. Entretanto, a visão psicanalítica é a de que não existe uma gramática comum de intercâmbio entre experiências, ou seja, um solo permeável em que seja passível a troca de significados de forma clara. Como diz Lacan, “a essência da comunicação é o mal-entendido”.

Diferentemente do que costumamos pensar, embora o termo venha de communicatio ou “tornar comum” (de communis: “público”, “compartido por vários”), quando seres humanos se comunicam, as trocas são desiguais, há pouca correspondência e de fato quase nenhuma interlocução. Por esse motivo, a escuta é a essência da Psicanálise; é sua ação instituidora. O artista precisa estar ciente dos limites da comunicação, posto que sua matéria prima é a linguagem e seu trabalho é estabelecer diálogos. A técnica não terá nenhum significado se o artista for destituído da capacidade de se colocar “no lugar do outro” ao produz suas obras.

Aulão, insta.jpgA famosa frase da canção de Milton Nascimento e Fernando Brant – “todo artista tem de ir aonde o povo está” interpreta de forma brilhante esse artista como um “porta-voz”, aquele cuja comunicação depende de ele estar onde o outro esteja, ou seja, no lugar do outro para se fazer compreender. Do contrário, não há comunicação, pois não há experiência mediada. Com sua obra, o artista apresenta um ponto de vista, colocando o observador como se estivesse em seu lugar; assim compartilha com ele as suas concepções. Mas para criar a empatia necessária a essa troca, é preciso que tenha primeiro se colocado no lugar do observador para produzir. Vemos cotidianamente milhares de imagens com que não dialogamos, ou que devido à capacidade da publicidade em criar imagens amplamente dialogáveis, dialogam conosco sem que peçamos. Já outras tantas imagens, nós as enxergamos mas, contudo não vemos: não tecem qualquer intercâmbio porque não nos causam experiências diretas. Isso é o que mobiliza o diálogo e os afetos: a experiência. Não abstrações.

Uma metáfora interessante disso é o livro de China Miéville, A cidade e a Cidade. Ele tematiza uma sociedade profundamente dividida, onde duas cidades se situam exatamente no mesmo lugar, cada uma com seus cidadãos e sua cultura, coexistindo sem nenhum intercâmbio ente si, sem sequer darem-se conta uns dos outros. O autor tematiza assim como o diálogo só acontece quando há dispositivos, afinidades e um regime simbólico que o oriente; do contrário, não há solo comum para entendimento mútuo. A comunicação depende de certos movimentos de recuo do sujeito, explicados pelo brilhante psicanalista e professor Christian Dunker no vídeo a seguir:

 

imagem da capa | ANA TERESA FERNANDEZ “Telaraña”, 2016

ANA TERESA FERNANDEZ | óleo sobre tela

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Publicado por Gustavot Diaz

Artista visual e escritor, co-fundador do espaço artístico MÍMESIS | Conexões Artísticas em Curitiba, e ministrante do curso Processos Poéticos. Vive atualmente em Porto Alegre (RS).

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