Arte, Desenho, Magia

Morris pode não comunicar ao leitor sua imagem do centauro, nem sequer nos convidar a ter uma, basta-lhe a nossa contínua fé em suas palavras, como no mundo real. [1]
JORGE LUIS BORGES

Toda expressão artística é um ordenamento de forças. A princípio dispersas na cultura, e assim alijadas de significação, são essas forças dotadas de “sentido” e orientação pelo ato poético, o qual então atribui contorno ao ininteligível, presença àquilo que está entre nós, mas ainda não pertence ao mundo humanizado da linguagem. Organizando-as, ou seja, dando-lhes forma, a arte lança as forças pulverizadas da cultura para o interior do jogo simbólico. O Desenho é apenas um dos dispositivos que entretece a malha de significados implicados nessa operação, por meio do que chamamos narrativa.

JOEL REA
JOEL REA “Crossroads”, 2017 | óleo sobre tela (122/170cm)

Alguns exemplos: organizando palavras que estão no mundo “em estado de dicionário”, o poeta articula experiências; desbastando formas excessivas da pedra, o escultor faz resultar a imagem que deseja; compondo, ou arranjando os sons que navegam inconscientes no ar, o músico emociona o ouvinte através da música.

“Dar sentido” é orientar experiências transformando a potência de significantes vazios em coordenadas sensíveis. Esta operação resulta em adensamento de nosso estar-no-mundo, transforma os eventos banais do cotidiano em ficções passíveis de serem integradas em nossas vidas como narrativas agentes de experiências. Do contrário, a existência se torna uma série de gestos performáticos sem sentido, eventos que não “marcam”. Aliás, este famoso adjetivo que sempre acompanha o termo experiência (“marcante”) é enunciativo dessa propriedade essencial do Desenho, desde um ponto de vista da etimologia: o núcleo morfológico de designare quer dizer “marcar, apontar, traçar por fora, no entorno” e signare (de signum = “sinal”, “marca”).

ANNA WYPYCH,
ANNA WYPYCH, “Paradox Boson 5”, 2017 | óleo sobre tela (100/70 cm)

Uma conclusão mais radical pode advir daí: se a narrativa (pense num filme, por exemplo) simula “experiências” no expectador, estas aparecem para ele como “reais”, uma vez que são capazes de comover, elucidar, enganar – numa palavra, iludir. O caso do cinema, já brilhantemente apontada pelo filósofo esloveno Slavoj Zizek, esclarece um ponto essencial do ato artístico: o cinema emula a condição de verdade. Isso quer dizer que reproduz o modus operandi da experiência, as coordenadas de crença que nos mobilizam cotidianamente. Em resumo, não são verdades objetivas que regulam nossas ações, mas a crença em ficções que sustentam certa sensação de realidade.

Assim é que, produzindo uma experiência ficcional que mimetiza uma experiência real (posto que a própria realidade aparece como ficção narrativa), o ato poético da representação emana o poder “mágico”, por assim dizer, de instituir onde não há. Semelhante ao prestidigitador, o artista tira coelhos da cartola fazendo ver o que não está, na medida em que edita a experiência visual do expectador e mobiliza ficções simbólicas (e não deveríamos incluir aí que esta é igualmente a operação do “milagre”?). É essa, não por acaso, a função original da filosofia, tal como entendida no período clássico: revelar, fazer aparecer, “dar à luz” a verdade antes oculta.

O antigo método de Sócrates – a maiêutica, com que o filósofo indagava os discípulos no intuito de desconstruir seus preconceitos, objetivava o esclarecimento por meio da extração de uma “verdade subjacente”. O termo grego se refere originalmente à “arte do parto” (do grego maieutike = dar a luz, parir; do  antigo maieutikós = obstetrícia, parto)[2].

JOHN BARRIOS O Desenho usa de método semelhante, conduzindo a percepção instaurando o desconhecido através do conhecido. Sua estrutura – a perspectiva, vale-se de dois pressupostos para efetivar seu poder de convencimento. Conforme afirma Panofsky, tais pressupostos são: o “olho imóvel”, e a premissa de que “uma secção transversal plana pode ser tomada por uma reprodução apropriada de nossa imagem óptica”. Isto é, o Desenho toma previamente como convenção instâncias inexistentes a fim de gerar uma sensação de realidade efetiva. Tal estratégia espera criar uma realidade autônoma que mobilize experiências verossímeis de realidade no expectador.

Enquanto mediador de experiências visuais, o Desenho cria volumes onde existe apenas o plano bidimensional do suporte; cria tempo onde antes havia apenas espaço; simula oposições tonais onde antes era branca folha. Mas apesar de alterar dimensões fundamentais da realidade, não deixa de oferecer uma experiência estável de realismo.

A partir do interior de seu sistema autorreferencial, as imagens artísticas intervém nas concepções acerca do mundo exterior, exercendo uma faculdade de convencimento que Coleridge chamou de “suspensão voluntária da descrença”[3]. Tal afirmação não deve ser lida, entretanto, como enunciativa da propriedade que a arte tem de nos fazer acreditar em suas criações após sustermos a crítica, mas justamente a de nos forçar suspender o raciocínio crítico e aceitar tão facilmente uma ilusão. Por que nos deixamos encantar assim tão facilmente diante de uma imagem e acreditar que lá está fulano, quando na verdade é apenas um pedaço de papel?

FELICIA FORTE,
FELICIA FORTE, “Night cereal”, 2018 | óleo sobre tela, (48’/54 in)

Talvez uma resposta esteja em uma antiga e complexa relação entre arte e magia. O termo, proveniente do antigo persa magush, contém a raiz magh (“ser capaz”, “ter poder”), e é também sinônimo de “fascinação” (dominar por encantamento). Fenômenos mágicos sempre encontram paralelo na visão: sonhos, impressões, ilusões: imagens, enfim, que vão convencendo os expectadores, dando a ver aquilo que só aparece mediante a intervenção do mágico. Vemos nesses entrelaçamentos o poder de convencimento (ou de “verdade”) da imagem, potência que deve ser levada a sério pelo desenhista.O escritor e quadrinista Alan Moore aponta precisamente essa relação, colocando os termos em sinonímia:

Na verdade, arte e magia são praticamente sinônimos. Eu imagino que isso remete ao fenômeno da representação, quando em nosso passado primordial, algum gênio ou outro flertou de verdade com a fórmula vencedora de “Isso significa aquilo”. Se “isso” era uma voz ou “aquilo” era uma marca numa parede ou um som gutural, foi um momento de representação. Foi o que realmente nos transformou do que éramos para o que poderíamos ser. Isso nos deu subitamente a possibilidade de linguagem. (…) A arte central do encantamento é tecer uma teia de palavras ao redor de alguém. E notamos muito cedo que essas palavras que escutamos alteram nossa consciência, e se utilizadas de uma maneira transformadora, nos levam a lugares dos quais nunca sonhamos ou que não existem.[4]

Tudo isso nos remete à capacidade do Desenho de guiar o pensamento através da indução de estímulos por meio de coordenadas. É deste modo que produz experiências visuais, demonstrando sua eficiência em constituir ou destituir afetos – é onde sua prática encontra ressonância entre o papel do mágico e do filósofo, a qual deriva do fato por si só bastante evidente de que, a fim de aparecer, uma coisa precisa vir à luz. A parturiente, portanto, tem um poder “mágico” no sentido de que faz aparecer o que antes era oculto.

A maiêutica logrou enorme êxito como método de indução justamente porque, ao invés de oferecer a doutrina, propunha extrair do próprio sujeito uma “verdade subjacente” que já se encontrasse nele. Disso resultava a crença de que a revelação era oriunda de seu interior – visto que o método articulava coordenadas lógicas pré-existentes, de modo a induzir no sujeito a triangulação da qual ele próprio afirmasse a síntese final. Assim como o Desenho, através de elementos conhecidos, ele institui o desconhecido – e assim opera sua mágica.

DEAN FOX
DEAN FOX “Dog Fight”, 2017 | óleo sobre tela, (152.4 × 152.4 cm)

É sempre importante frisar nesse contexto que a técnica do Desenho é o suporte material da expressão; mero intermediário e meio de conteúdos psíquicos e emocionais; nunca um fim em si mesmo. Se insistimos neste tema em nossos textos, é para que fique suficientemente clara a importância do conteúdo temático das produções – em especial desenhísticas, que costuma servir apenas de suporte ao aprendizado e a qual a tradição sempre atribuiu valor secundário. A necessidade de se pensar sobre os assuntos a serem trabalhados desde o mais mínimo esboço, sem dúvida supera preocupações de ordem técnica.

…………………………

[1] Borges, Jorge Luis. El Arte Narrativo y la MagiaDiscussiónInObras Completas. Buenos Aires: Emecé Editores, 1990
[2] Fonte: https://pt.wiktionary.org/wiki/grego
[3] Expressão do crítico Samuel Coleridge de 1817, que afirmava ser no “excesso de verossimilhança” que a ficção se torna “fidedigna”.
[4] Entrevista publicada no site www.believermag.com e tradução disponível em: https://formigaeletrica.com.br/quadrinhos/artigos-hq/entrevista-com-alan-moore/

Inscreva-se no site para atualizações:
anatomiaartistica.com


Pintura da capa | COLLIN CHILAG

Publicidade

Publicado por Gustavot Diaz

Artista visual e escritor, co-fundador do espaço artístico MÍMESIS | Conexões Artísticas em Curitiba, e ministrante do curso Processos Poéticos. Vive atualmente em Porto Alegre (RS).

Um comentário em “Arte, Desenho, Magia

Deixe um comentário

Preencha os seus dados abaixo ou clique em um ícone para log in:

Logo do WordPress.com

Você está comentando utilizando sua conta WordPress.com. Sair /  Alterar )

Foto do Facebook

Você está comentando utilizando sua conta Facebook. Sair /  Alterar )

Conectando a %s

%d blogueiros gostam disto: