Morris pode não comunicar ao leitor sua imagem do centauro, nem sequer nos convidar a ter uma, basta-lhe a nossa contínua fé em suas palavras, como no mundo real. [1]
JORGE LUIS BORGES
Toda expressão artística é um ordenamento de forças. A princípio dispersas na cultura, e assim alijadas de significação, são essas forças dotadas de “sentido” e orientação pelo ato poético, o qual então atribui contorno ao ininteligível, presença àquilo que está entre nós, mas ainda não pertence ao mundo humanizado da linguagem. Organizando-as, ou seja, dando-lhes forma, a arte lança as forças pulverizadas da cultura para o interior do jogo simbólico. O Desenho é apenas um dos dispositivos que entretece a malha de significados implicados nessa operação, por meio do que chamamos narrativa.

Alguns exemplos: organizando palavras que estão no mundo “em estado de dicionário”, o poeta articula experiências; desbastando formas excessivas da pedra, o escultor faz resultar a imagem que deseja; compondo, ou arranjando os sons que navegam inconscientes no ar, o músico emociona o ouvinte através da música.
“Dar sentido” é orientar experiências transformando a potência de significantes vazios em coordenadas sensíveis. Esta operação resulta em adensamento de nosso estar-no-mundo, transforma os eventos banais do cotidiano em ficções passíveis de serem integradas em nossas vidas como narrativas agentes de experiências. Do contrário, a existência se torna uma série de gestos performáticos sem sentido, eventos que não “marcam”. Aliás, este famoso adjetivo que sempre acompanha o termo experiência (“marcante”) é enunciativo dessa propriedade essencial do Desenho, desde um ponto de vista da etimologia: o núcleo morfológico de designare quer dizer “marcar, apontar, traçar por fora, no entorno” e signare (de signum = “sinal”, “marca”).

Uma conclusão mais radical pode advir daí: se a narrativa (pense num filme, por exemplo) simula “experiências” no expectador, estas aparecem para ele como “reais”, uma vez que são capazes de comover, elucidar, enganar – numa palavra, iludir. O caso do cinema, já brilhantemente apontada pelo filósofo esloveno Slavoj Zizek, esclarece um ponto essencial do ato artístico: o cinema emula a condição de verdade. Isso quer dizer que reproduz o modus operandi da experiência, as coordenadas de crença que nos mobilizam cotidianamente. Em resumo, não são verdades objetivas que regulam nossas ações, mas a crença em ficções que sustentam certa sensação de realidade.
Assim é que, produzindo uma experiência ficcional que mimetiza uma experiência real (posto que a própria realidade aparece como ficção narrativa), o ato poético da representação emana o poder “mágico”, por assim dizer, de instituir onde não há. Semelhante ao prestidigitador, o artista tira coelhos da cartola fazendo ver o que não está, na medida em que edita a experiência visual do expectador e mobiliza ficções simbólicas (e não deveríamos incluir aí que esta é igualmente a operação do “milagre”?). É essa, não por acaso, a função original da filosofia, tal como entendida no período clássico: revelar, fazer aparecer, “dar à luz” a verdade antes oculta.
O antigo método de Sócrates – a maiêutica, com que o filósofo indagava os discípulos no intuito de desconstruir seus preconceitos, objetivava o esclarecimento por meio da extração de uma “verdade subjacente”. O termo grego se refere originalmente à “arte do parto” (do grego maieutike = dar a luz, parir; do antigo maieutikós = obstetrícia, parto)[2].
O Desenho usa de método semelhante, conduzindo a percepção instaurando o desconhecido através do conhecido. Sua estrutura – a perspectiva, vale-se de dois pressupostos para efetivar seu poder de convencimento. Conforme afirma Panofsky, tais pressupostos são: o “olho imóvel”, e a premissa de que “uma secção transversal plana pode ser tomada por uma reprodução apropriada de nossa imagem óptica”. Isto é, o Desenho toma previamente como convenção instâncias inexistentes a fim de gerar uma sensação de realidade efetiva. Tal estratégia espera criar uma realidade autônoma que mobilize experiências verossímeis de realidade no expectador.
Enquanto mediador de experiências visuais, o Desenho cria volumes onde existe apenas o plano bidimensional do suporte; cria tempo onde antes havia apenas espaço; simula oposições tonais onde antes era branca folha. Mas apesar de alterar dimensões fundamentais da realidade, não deixa de oferecer uma experiência estável de realismo.
A partir do interior de seu sistema autorreferencial, as imagens artísticas intervém nas concepções acerca do mundo exterior, exercendo uma faculdade de convencimento que Coleridge chamou de “suspensão voluntária da descrença”[3]. Tal afirmação não deve ser lida, entretanto, como enunciativa da propriedade que a arte tem de nos fazer acreditar em suas criações após sustermos a crítica, mas justamente a de nos forçar suspender o raciocínio crítico e aceitar tão facilmente uma ilusão. Por que nos deixamos encantar assim tão facilmente diante de uma imagem e acreditar que lá está fulano, quando na verdade é apenas um pedaço de papel?

Talvez uma resposta esteja em uma antiga e complexa relação entre arte e magia. O termo, proveniente do antigo persa magush, contém a raiz magh (“ser capaz”, “ter poder”), e é também sinônimo de “fascinação” (dominar por encantamento). Fenômenos mágicos sempre encontram paralelo na visão: sonhos, impressões, ilusões: imagens, enfim, que vão convencendo os expectadores, dando a ver aquilo que só aparece mediante a intervenção do mágico. Vemos nesses entrelaçamentos o poder de convencimento (ou de “verdade”) da imagem, potência que deve ser levada a sério pelo desenhista.O escritor e quadrinista Alan Moore aponta precisamente essa relação, colocando os termos em sinonímia:
Na verdade, arte e magia são praticamente sinônimos. Eu imagino que isso remete ao fenômeno da representação, quando em nosso passado primordial, algum gênio ou outro flertou de verdade com a fórmula vencedora de “Isso significa aquilo”. Se “isso” era uma voz ou “aquilo” era uma marca numa parede ou um som gutural, foi um momento de representação. Foi o que realmente nos transformou do que éramos para o que poderíamos ser. Isso nos deu subitamente a possibilidade de linguagem. (…) A arte central do encantamento é tecer uma teia de palavras ao redor de alguém. E notamos muito cedo que essas palavras que escutamos alteram nossa consciência, e se utilizadas de uma maneira transformadora, nos levam a lugares dos quais nunca sonhamos ou que não existem.[4]
Tudo isso nos remete à capacidade do Desenho de guiar o pensamento através da indução de estímulos por meio de coordenadas. É deste modo que produz experiências visuais, demonstrando sua eficiência em constituir ou destituir afetos – é onde sua prática encontra ressonância entre o papel do mágico e do filósofo, a qual deriva do fato por si só bastante evidente de que, a fim de aparecer, uma coisa precisa vir à luz. A parturiente, portanto, tem um poder “mágico” no sentido de que faz aparecer o que antes era oculto.
A maiêutica logrou enorme êxito como método de indução justamente porque, ao invés de oferecer a doutrina, propunha extrair do próprio sujeito uma “verdade subjacente” que já se encontrasse nele. Disso resultava a crença de que a revelação era oriunda de seu interior – visto que o método articulava coordenadas lógicas pré-existentes, de modo a induzir no sujeito a triangulação da qual ele próprio afirmasse a síntese final. Assim como o Desenho, através de elementos conhecidos, ele institui o desconhecido – e assim opera sua mágica.

É sempre importante frisar nesse contexto que a técnica do Desenho é o suporte material da expressão; mero intermediário e meio de conteúdos psíquicos e emocionais; nunca um fim em si mesmo. Se insistimos neste tema em nossos textos, é para que fique suficientemente clara a importância do conteúdo temático das produções – em especial desenhísticas, que costuma servir apenas de suporte ao aprendizado e a qual a tradição sempre atribuiu valor secundário. A necessidade de se pensar sobre os assuntos a serem trabalhados desde o mais mínimo esboço, sem dúvida supera preocupações de ordem técnica.
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[1] Borges, Jorge Luis. El Arte Narrativo y la Magia. Discussión. In: Obras Completas. Buenos Aires: Emecé Editores, 1990
[2] Fonte: https://pt.wiktionary.org/wiki/grego
[3] Expressão do crítico Samuel Coleridge de 1817, que afirmava ser no “excesso de verossimilhança” que a ficção se torna “fidedigna”.
[4] Entrevista publicada no site www.believermag.com e tradução disponível em: https://formigaeletrica.com.br/quadrinhos/artigos-hq/entrevista-com-alan-moore/
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Pintura da capa | COLLIN CHILAG
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