DESENHAR É PRECISO?

A não contemplar, prefiro
definitiva cegueira.
THIAGO DE MELLO

Toda imagem é uma interpretação, uma violenta alteração de contexto[1]. Vindo do latim imitari (“copiar”, “fazer semelhante”), o termo já pressupõe a existência de um “original”, algo de que a imagem deriva. O sentido etimológico de “interpretação” vai no mesmo sentido, indicando mediação, algo como “dar a conhecer através de” ou “agenciar o conhecido”[2]. Mesmo no território das HQ’s, games, séries, cinema de animação e produções do gênero (onde a tradição do Desenho recentemente encontrou refúgio) a percepção de que a imagem é um poderoso substitutivo da palavra – ou seja, da narrativa, do enredo, ou do argumento, parece suficientemente clara. Algo que entre o público geral está perfeitamente formulado na expressão: entendeu ou quer que eu desenhe?

LITA CABELLUT,
LITA CABELLUT, “Old master Nude”, 2019 (série “The Victory of Silence”) | mixed media sobre tela (200×180)

Não se pode ver uma imagem sem se levar em consideração seu conteúdo. Produzir imagens é, portanto, fazer refletir (o que demanda reflexão também da parte do próprio produtor).

E, na condição de portadoras de intenções, as imagens miram sempre um destinatário, intervindo na construção das representações imaginárias de quem as recebe. Em síntese: se as formas portam e transmitem significados, estes dependem das imagens que atravessam as relações dos sujeitos no mundo.

Isso por si só explica a primazia da imagem nas interações societais: nas redes sociais, na navegação web cada vez mais mediada por imagens, na performancização da cultura pop, nos mega-eventos, na “arquitetura-espetáculo” – enfim, a estetização do mundo (para usar o termo de Lipovetsky). Esse fenômeno justifica que o produtor visual conheça a imagem em sua natureza e em sua estrutura. E talvez nenhuma técnica exerça melhor esta função do que o Desenho. Uma imagem vale mais do que mil palavras, mas somente para quem a sabe ler.

Onde eu aplico isso no mercado?

A dúvida, entretanto, quanto à necessidade de se saber desenhar persiste, especialmente do ponto de vista da tecnologia: para que perder tempo desenhando na arquitetura, se programas criam croquis em perspectiva simulando calungas já em campo de profundidade. Ou no design gráfico: se programas incluem centenas de layouts para programação visual, para que desenhar? Onde aplico isso no mercado – se o que determina a produção não é a criatividade, mas os custos e o (mau) gosto do cliente? Que finalidade tem a educação do olhar afinal quando, na prática, Design é apenas projeto e gestão, quando a criação (mesmo nas áreas ditas “criativas”), é condicionada pelo mercado, e os softwares de edição de imagem fazem todo o trabalho?

Clique para informações
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Creio que todo professor de Desenho já deve ter ouvido esse tipo de questionamento, que denuncia a pouca imaginação acerca do que seja a prática desenhística. Nas últimas décadas, desenhar deixou de ser uma técnica para se tornar uma “questão teórica” privilegiada particularmente nos cursos de Artes Visuais das universidades brasileiras (onde as provas de habilidade específica para concurso vestibular desapareceram junto das disciplinas práticas). Hoje o estudante de Artes Visuais não sabe mais desenhar, e isso parece não representar nenhum problema para a Academia. É claro que não ignoramos a reviravolta estético-filosófica do Pós-moderno que permitiu isso; o que é incompreensível é o desconhecimento da Academia acerca de um movimento absolutamente contemporâneo, que nos últimos 20 anos vem realocando o Desenho em todas as suas manifestações para a centralidade da cena artística – falamos da Figuração Contemporânea.

Para o momento, é preciso enunciar nossa concepção do que seja Desenho, desde já admitindo sua necessidade no trato com imagens. Em síntese, Desenho é registro e articulação experiencial, e estratégia de mediação afetiva. Mais do que representar objetos e ideias por meio de uma técnica, o Desenho é capaz de efetuar o registro profundo da experiência ao propor diálogos intersubjetivos, bem como conectar o sujeito à esfera do sensível promovendo sua intervenção no corpo social pela forma simbólica. Segue um resumo desses temas, sobre os quais vimos refletindo aqui na plataforma:

Registro e articulação experiencial

Há muitas formas de se registrar uma experiência. O Desenho talvez seja a mais imediata, por ser intuitiva. Desde a criança se apropriando dos símbolos através do desenho, até o sujeito em análise com quem o psicanalista procura estabelecer laços, o Desenho é uma “ponte entre consciências” (segundo expressão de Lydio Bandeira de Mello). Mas aqui é preciso inverter os fatores para equacionar corretamente a questão: em sentido linguístico, para que haja experiência, antes é preciso haver o registro.

A vivência de uma experiência só é efetiva quando traduzida em termos de linguagem. Ao desenhar, inscrevo uma experiência visual em linguagem formal, podendo assim intercambiar a experiência primitiva. Ou seja, registro experiências por meio da representação em linguagem – ação que me faculta compartilhar conteúdos experienciais. Assim é que o Desenho é também dispositivo de mediação afetiva pelo  qual me aproximo do outro.

DANIEL SPRINCK,
DANIEL SPRINCK, “Through My Fingers”, 2010 | óleo sobre tela (60X60)

Estratégia de mediação afetiva

A dimensão comunicativa inalienável da imagem faz dela um operador permanente de valores referentes que organizam e dimensionam nossa experiência de realidade. Não são apenas os sinais e placas de trânsito – todas as imagens que vemos cotidianamente induzem/incidem em nossa interpretação e avaliação do mundo. A partir delas estabelecemos padrões de beleza e os criticamos, expressamos visões de mundo e nos posicionamos espacialmente no interior das relações.

Por exemplo: tatoos e grafites exprimem determinados significados. Fazem parte (junto das demais manifestações gráficas e artesanais) da mediação simbólica com o mundo, construindo referentes que nos ajudam a mediar afetos. Seu objetivo é o de expressão estética em sentido amplo – como a produção artesanal em geral, cujo pressuposto é alcançar uma estilização o mais reconhecível possível. Assim, a ressonância de sentidos de um estilo – seja de um tatuador, de um estilista ou de um artesão, gera identificações que possibilitam que os “afetados” se expressem (os sujeitos identificados que passam então a afetar outros).

MATT R. MARTIN,
MATT R. MARTIN, Woven Skin In Morning Light, 2018 | óleo sobre tela

Seja o que for que expresse, é através de uma manifestação estética específica que o sujeito participa do patrimônio simbólico socialmente compartilhado, dentro do qual disputará influência: esse processo é o território do Desenho. Nas trocas simbólicas, as imagens relativizam outras imagens, e a ponta de lança dessa disputa é a narratividade que somente o Desenho poder promover – seja na fotografia, na pintura, no desenho ou na publicidade. Ao contar histórias a partir de referentes da cultura, o Desenho rearticula nossa compreensão da realidade: por exemplo, uma logomarca, valendo-se de símbolos e formas sociais, incita reações específicas, faz com que os consumidores paguem mais por um produto as vezes insignificante; um bom design altera comportamentos de consumo; uma fotografia bem produzida gera interesse sobre o modelo, sobre a matéria, ou ainda algo alheio a ambos; uma produção artística de ativismo político pode mobilizar a simpatia de milhões em torno de uma causa.

Além dessas operações constitutivas do “processo Desenho”, ele desempenha funções somente reveladas a quem pratica, especialmente o desenho de observação. Costumo dizer que os alunos entram cegos em meus cursos: sem a compreensão da perspectiva que regula o aparecimento dos corpos no espaço, eles habitam um mundo em que a visão é limitada à bidimensão. Treinando a visão a partir da experiência sensível das formas, sentem aos poucos que uma dimensão lhes havia sido roubada: a estética, então subsumida por uma noção utilitarista do mundo. O Desenho, mais do que qualquer outra atividade, tem o poder de reativar essa conexão – desde as relações formais das coisas até o discernimento dos valores, contextos produtivos e códigos culturais que as formas carregam.


[1] Vide mais sobre isso no Documentário “Ética das aparências e ética das imagens” de Adauto Novaes.
[2] De interpres “agente, tradutor”; interpretari  “traduzir, explicar”; inter- “entre”, mais o radical prat– “dar a conhecer”. Ambas as consultas no site origemdapalavra.com.br

apostila (1)

 


Imagem da capa:
RITCHELLY OLIVEIRA, Lacunas
carvão sobre papel (42cm x 60cm)
2015
RITCHELLY OLIVEIRA,
RITCHELLY OLIVEIRA, “Lacunas”

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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Publicado por Gustavot Diaz

Artista visual e escritor, co-fundador do espaço artístico MÍMESIS | Conexões Artísticas em Curitiba, e ministrante do curso Processos Poéticos. Vive atualmente em Porto Alegre (RS).

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