
O lugar da representação
Uma questão que deve ser permanentemente pautada na reflexão artística contemporânea, com especial interesse à fotografia é, sem dúvida, a da representação. Quando parece estar equacionada, volta à tona na próxima Bienal ou no próximo salão do MEAM. Não basta conhecermos a desagregação do sistema de representação que teve lugar no final do século XIX, seguida de experimentações e rearticulações dos padrões normativos da arte. A questão, colocada para os artistas do último século, chega também para nós; as respostas dadas no passado devem ser transformadas em novas interrogações, pois ainda hoje apresentam sérios desafios para fotógrafos e produtores de imagens em geral. Enquanto a geração de Marcel Duchamp e dos dadaístas era asfixiada pelo ambiente academicista e respirava uma modernidade que acabava de se abrir à especulação, a geração presente encontra ambiente totalmente diverso, à luz da experiência desconstrutivista pós-moderna. Creio que todo artista deve ao menos tentar elaborar em seu trabalho pessoal qual o “lugar” que nele assume a representação.
Colocando em perspectiva: quando Cézanne (1839-1906) afirmou “uma pintura é uma pintura”, operava uma importante cisão na arte. Seu gesto conferia autonomia à pintura, a qual deixava de estar submetida ao registro do real visível. Sua função representacional era questionada:
Cézanne deixara de aceitar como axiomáticos quaisquer métodos tradicionais de pintura. Decidira partir do zero, como se nenhuma pintura tivesse sido feita antes dele. […] A invenção de Brunelleschi da perspectiva linear não o interessou excessivamente. E jogou-a fora quando descobriu que ela dificultava o seu trabalho.[1]

A recusa, porém, de Cézanne à perspectiva brunelleschiana – conquista secular de gerações de artistas desde o final a Renascença – não era uma “ruptura” com o esforço renascentista de representação: antes buscava uma “verdade da representação do espaço”, impossível de se obter com o modelo matemático da perspectiva geométrica. Desde o Impressionismo, a aliança entre o Desenho e o olho fora quebrada e a visão desfez as premissas de seu pacto com a natureza; a pergunta que então se colocou no início do século XX pode ser elaborada desta forma: “se o objetivo da arte é representar a realidade, o que afinal é a realidade?” Um dos fenômenos-causa imediatos desta transformação é o surgimento da fotografia e da ciência óptica – reveladoras da instabilidade da cor e de sua natureza aparente de reverberação luminosa: os objetos visíveis são no fundo falsas impressões oriundas da sensibilização da retina. O impacto dessa revelação tinha igual alcance filosófico – era como se provássemos pela via científica a premissa filosófica da “ilusão dos sentidos” enunciada em Platão. A descoberta dos fenômenos luminosos justifica o desprezo dos impressionistas pela temática de suas obras, expresso na afirmação de Claude Monet: “o tema é uma coisa secundária; o que quero reproduzir é o que existe entre ele e eu”. O olho pode assim libertar-se da falsidade aparente para se reconciliar com a verdade da representação.
Naquele momento, sequer se supunha que essa relação entre ofício artístico e representação se distanciaria ainda mais e novas enunciações seriam necessárias para dar conta das experiências estéticas que se seguiram. O tensionamento entre os elementos da equação “verdade e representação” logo resultaria em rompimento. A partir de Duchamp, dá-se uma alteração substancial na pergunta: “se o objetivo da arte é representar a realidade, o que afinal é representar?” Quando seu famoso urinol (A fonte, 1917) passou a ser aceito como arte, o poder das instâncias de legitimação artística era posto em cheque, ao passo em que a representação como “função artística” perdia centralidade (o urinol era um urinol real, um objeto imediatamente retirado do contexto da vida cotidiana, não representava outra coisa que não fosse ele mesmo). Duchamp aproveitou os impactos deste evento e questionou pela primeira vez de forma radical o lugar do artista. Se o urinol é válido como “arte”, uma vez que a Instituição (sistema das artes) o valida, então a mera ação propositiva do autor faz dele um artista. Esse deslocamento de um objeto do comércio para dentro do museu passa a ter efeito poético – o objet trouvé dadaísta; o mesmo processo se repetiu nas assemblages, nas obras cubistas e surrealistas com inserção de produtos fabricados, na Arte Pop e especialmente na Arte Conceitual, cujo repertório se confundia ao de objetos e imagens da indústria de massa. Assim a “ação propositiva” assumia poder instituidor, deslocando o lugar tradicional das instituições e do artista na medida mesma em que a obra perdia seu estatuto de “obra” – desmaterializada, tornada “proposição” ou “conceito”.
Entre os fotógrafos, a representação deve ser tema de permanentemente debate. Não apenas a tríade artista-obra-público entrou em colapso – o lugar do fotógrafo precocemente se diluiu.
Quando os meios de captação se tornavam mais acurados e a fotografia surgia como ferramenta capaz de “representar” o real com grande fidelidade – precisamente neste instante a função representativa da arte era colocada em xeque. Os fotógrafos então assumem o encargo da representação a partir do último quarto do século XIX, quando o Impressionismo se afasta das preocupações com objetos e temáticas em nome da sensação subjetiva dos artistas. Logo, porém se evidenciará o fato de que a fotografia se trata enfim de apenas mais uma forma de “representação” (não mera “captação”). Este paradoxo de origem se acentua com o tempo: quanto mais “realista” era essa representação, mais sofisticados os argumentos com que a crítica desconstruía esse conceito. Na década de 1960, o auge das teorias pós-modernas de desconstrução das grandes narrativas (onde se situa o desmonte filosófico da “representação”) coincide com a popularização do filme fotográfico colorido.

Hoje, a questão se complexifica. Se qualquer pessoa tem os meios de fotografar e distribuir (publicar) suas fotos via celular e redes sociais – quem de fato é fotógrafo hoje? Aquele que domina a técnica? Mas qual o valor da técnica? Voltamos assim à mesma questão com que o urinol duchampiano balançou as artes no século passado, com o diferencial de que as instâncias legitimadoras deixaram de ser museus e o poder do sistema das artes transferiu-se para o marketing e a publicidade das empresas e produtoras, que determinam os referentes e os objetos do gosto, valendo-se da representação como forma de convencimento.
A questão retorna

O radical e necessário questionamento da representação requer permanente atualização; do contrário, será dogma. Na Filosofia da Arte é questão já superada, contudo as inferências teóricas talvez não sejam as mais indicadas para solucionar uma questão que é pertinente ao âmbito material do trabalho artístico. A práxis não será o lugar privilegiado das demandas da arte? O artista produzindo em seu atelier, o fotógrafo em pesquisa de campo ou ampliando em seu laboratório, enfim, não seriam os produtores de imagens, ao invés dos produtores de conceitos aqueles a quem mais toca o destino e a situação da produção imagética? É a prática que deve orientar a Teoria da arte; no manancial efetivamente produzido contemporaneamente é onde o esteta deve se orientar a fim de enunciar o conceito de “arte contemporânea”. Ao colocar-se questões e, sobretudo, ao experimentar linguagem, o artista renova a arte e atualiza esse interrogante da representação, que varreu todo o século XX. O que temos visto, entretanto, é o repasse da “solução filosófica” (que normalmente redunda em arte – especialmente nas universidades, e a reprodução de certa “receita de se fazer arte”, como se a questão tivesse sido concluída definitivamente por filósofos franceses na década de 60. Passa-se daí direto à desconstrução, sem que se permita ao discente o conhecimento da forma e sua construção; aprende-se a questão já elaborada, sem o saber fazer; a elaboração sem laboração.
Insistimos nessa revisão da questão da representação porque – em desacordo à expectativa da morte da arte – ela ressurge nesse momento com uma força inaudita, provando que a questão permanece em aberto. No mundo da imagem, ao invés de desaparecer, a representação foi amplificada: no cinema e na literatura passou ao 3D e o sucesso incessante das séries demonstra que a narrativa é um fenômeno que ainda mobiliza multidões, capaz como nenhum outro de criar leitores; na publicidade, que sempre abusou da representação realista, o story telling tem se mostrado um meio mais eficaz de convencimento. No desenho e na pintura, a representação realista opera, em plena contemporaneidade, uma articulação entre qualidade técnico-formal e conceitual talvez inédita na expressão hiper-realista (ver imagens do post). Mas nessa arte, o poder de “suspensão voluntária da crítica” é utilizado como criação de possibilidades, desestabilização e questionamento do papel do espectador.
Prévia da Oficina “Um olhar fotográfico através da arte” que acontecerá entre 18 de setembro e 06 de novembro na Escola Câmara Viajante, em Porto Alegre. Acompanhe outros conteúdos aqui: PARTE I e PARTE II. Abordaremos essas e outras relações da representação no curso “Um olhar fotográfico através da arte: aprendendo a decifrar o significado das imagens” a ser aplicado na ESCOLA CÂMERA VIAJANTE, entre 15 de maio e 21 de Agosto de 2017. Palestra gratuita de apresentação dia 02/08/2017 às 19h.
Segue na galeria uma brevíssima amostra do ressurigmento do Hiper-realismo na pintura, onde se opera uma fusão entre fotografia/desenho/pintura (todas as imagens são pinturas em óleo sobre tela ou desenho em grafite). Para um catálogo maior: Coletânea Realista
[1] GOMBRICH, E.H. “Arte e ilusão”. São Paulo: Martins Fontes, 1986. p.433 apud. Marcelo Duprat Pereira, “A expressão da natureza na obra de Paul Cézanne”. Disponível em http://www.eba.ufrj.br/pintura/pesquisas/docentes/cezannelivro.pdf
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