“É no simbólico que o desejo se engatilha”. Este enunciado, que remete à psicanálise de Lacan, revela o seguinte: o mundo da linguagem é onde o desejo toma forma. Sem imagem, nossos anseios, medos e percepções não encontram recursos de auto-expressão: deixam de ser elaborados formalmente. Quer dizer que a experiência não se processa, senão por meio da “narrativa” ou registro no universo simbólico. Feito o registro, a experiência pode funcionar como moeda de troca social, pode ser compartilhada, pode se realizar enquanto experiência factual. Para o desenhista, este saber é essencial.

Indo mais longe, Lacan reconhece na imagem o catalisador de um processo identificatório – a matriz simbólica que situa a instância do “eu” e opera como estruturador do sujeito. (A quem se interessar, segue um artigo de Lacan sobre o tema: “O Estágio do espelho como formador da função do eu”) Toda nossa relação com o universo é mediada por imagens, de tal modo que, afinal nossa relação com o Universo é sempre uma relação com imagens, uma relação mediada. A produção visual é, assim uma forma de se relacionar com o desejo – desejo que encontra na linguagem uma viabilidade, uma plataforma de expressão. O que nos conta uma imagem? E como pode ela realizar esse processamento da experiência? A fim de responder, é necessário reconstituir o momento em que a experiência passou a integrar o território artístico.
Quando, na Idade Média, aparece a figuração do corpo humano nas produções simbólicas, era em forma de “alegoria” que se apresentava, como encarnação de ideias abstratas. Não era uma imagem “estética” em sentido pleno, uma vez que aquelas representações tinham fins pedagógicos e de exortação moral, não voltados à estesia sensual dos sentidos. Para fins que se quisessem realistas, o artesão medieval não teria a oferecer mais do que uma técnica precária para a figuração de seus deuses e heróis: a recusa consciente à representação realista explica a inexistência de qualquer precisão na produção artística até o século XIV.

As figuras dos mosaicos, encáusticas e afrescos anteriores a esse século parecem desproporcionais em tamanho, deformadas anatomicamente, deslocadas no espaço pictórico. Observando-as com atenção, ocorre-nos um insistente questionamento: como o realismo pode demorar tanto para aparecer (efetivar-se apenas no cenário artístico moderno do século XIX)? A grosso modo, até o surgimento do fenômeno do realismo moderno não havia um fim que se pretendesse mimético no sentido extremo, por não haver nenhum sujeito capaz de protagonizar a experiência tal como a conhecemos – ou seja, a experiência “realista”. A ausência da necessidade inviabiliza a formação do órgão: no contexto anterior à Renascença, o estudo da Anatomia Artística, da perspectiva e da composição eram impensáveis, assim como o interesse em plasmar uma imagem que simulasse a aparência física de Deus, de Cristo, da Virgem ou qualquer outro herói do imaginário católico (lembrando que a igreja tutelava não apenas o que devia ou não ser representado, mas os próprios referentes que qualificavam a compreensão das imagens).
Estamos falando de um período histórico onde a mediação (ou o registro, a articulação simbólica entre o “sujeito” e o Universo, que permite a criação e fruição de imagens) era mística. O misticismo religioso até aí guiava o sentido da própria realidade. Até hoje, não raro, muitas pessoas atribuem causas místicas a fenômenos naturais, mesmo quando são exaustivamente explicados pela ciência (afinal, nossas certezas até certa medida, são apenas crenças).
Em síntese, a imagem produzida na Idade Média era mística, guiando-se estritamente por valores simbólicos enunciados pela fé. A percepção de seus artesãos orientava-se por coordenadas transcendentais – não científicas, de diagnóstico da realidade. É que até então, não havia um sujeito (moderno) que pudesse protagonizar a ação e expressão uma visão de mundo particular, sendo esta até então regida pela visão absoluta de Deus, mediada pela igreja católica. Sem que a experiência houvesse entrado em jogo no campo da representação, não fora possível ainda nem a perspectiva, nem a Anatomia no arsenal das técnicas artísticas.
Por natureza, o aparecimento da Anatomia na arte foi tributária de outro dispositivo, sem o qual os estudos anatômicos não teriam surtido o efeito que tiveram: a perspectiva. Foi ela a responsável por ordenar o lugar do artista em relação às imagens, sendo o instrumento capaz de introduzir a “experiência (para situar então o “sujeito da experiência”) no campo artístico. Esse sujeito – que é afinal o sujeito moderno – que demorou séculos para aparecer no horizonte humano e o qual a contemporaneidade dissolveu, (Jacques Lacan chega mesmo a definir o humano como portador de uma “falta” constitutiva, um sujeito “barrado” cuja natureza é a ausência de si mesmo enquanto sujeito uno e indivisível) encontra condições de expressão no século XIV.
Perspectiva: eixo fundamental da representação

Filippo Bruneleschi (1377|1446), um genial ourives florentino, estudou minuciosamente as ruínas do legado clássico dispersas pela Itália e pode realizar alguns experimentos que encontraram imediata recepção na virada do século XIV para o XV. Num desses experimentos, Brunelleschi ficou no umbral da porta de entrada de Santa Maria dei Fiori, de onde via, bem diante de si, o Batistério de Florença – o qual pintou em uma placa de madeira. No lugar do céu ele colou prata polida, que espelhava a luz do sol, dando uma ilusão tão perfeita do Batistério que a pintura era tida, para os padrões da época, como extremamente realista. Nessa placa Brunelleschi fez um furo no lugar do ponto de fuga do desenho. O experimento consista em entregar um espelho a alguém e pedir que olhasse a tela não diretamente, mas a imagem refletida neste espelho, mirando-a através do buraco aberto no verso da pintura (imagens abaixo). O que se tinha então era mais do que a imagem de uma pintura muito bem feita – era a impressão de que se estava diante do próprio Batistério. Se o experimento fosse realizado em Roma ou qualquer outra cidade, a impressão seria a mesma: a de que o espectador estava em Florença, na frente do Batistério.[1]

Com suas pesquisas, Brunelleschi pode criar o sistema de representação conhecido como perspectiva que, introduzindo a experiência visual (subjetiva), substituiu a mística que coordenava a representação – na época ainda não baseada na observação. Essa experiência visual, de fato, só pode existir amparada em um regime específico de visualidade que então passava por uma profunda transformação. Os afrescos medievais, imbuídos de uma noção cumulativa do espaço compositivo, só acumulavam as figuras no suporte, sem outra relação entre elas que a do valor simbólico atribuído ao que fosse retratado. Assim Nossa Senhora, quando aparece na pintura, pode ter o dobro do tamanho de outro personagem no afresco que não possua tanta importância simbólica; assim também o rei é maior que seus discípulos e até maior que seu próprio castelo; Jesus pode ser maior e estar mais em evidência que os apóstolos, etc. sem nenhuma ordem espacial, ou disposição segundo a profundidade de plano. Essas obras eram diretamente influenciadas pela crença de seus autores na “verdade” das escrituras, que não dependia de nenhuma objetividade (ou subjetividade) de visão; nenhuma experiência comprobatória. Não pressupondo nenhuma “visão individual”, aquela “verdade” dependia sim de uma vocação divina, de uma concepção do mundo que emanava de Deus. Qualquer subjetividade criadora do sujeito não seria possível – nenhum destes elementos estavam presentes na sensibilidade medieval.
Os procedimentos de Brunelleschi permitiram a reorganização do espaço na representação artística ao transformá-lo num ente “mensurável” (o qual se pode organizar racionalmente e atribuir unidade) e evidenciaram o aludido processo de transformação do olhar e do regime de visualidade vigentes. Com o auxílio da perspectiva, o artista (que era ainda um artesão) dispunha seus personagens conforme sua vontade em um único plano no afresco, dando unidade espaço-temporal às imagens por meio da tridimensionalidade.
A função narrativa do Desenho
Trata-se de uma consciência avançada de narratividade como função figurativa e, portanto, de um primeiro passo para a autonomia (e autoconsciência) da arte. O que antes era eterno (a corte celestial de anjos e santos, sem tempo e sem espaço) desce, enfim, à terra, onde os homens começavam a demandar experiências sensíveis para confirmar sua crença. O espaço pictórico precisava ser reelaborado e com a perspectiva os personagens alcançam o poder de figurar nas telas encarnados como corpos finitos, sensíveis à beleza física. Sua disposição se daria por meio da geometria que unifica o espaço e iguala todos os personagens, representados então não mais por sua importância religiosa, afetiva ou simbólica – mas apenas pela posição que ocupavam nos planos de profundidade.

Enfim, a perspectiva linear é a manifestação máxima da alteração do regime visual que permitiu a “experiência individual” – tanto do artista quanto do espectador. Sendo expressa sempre através de um ponto de fuga, é imprescindível a existência de um sujeito que veja a realidade conforma seu próprio ponto de vista, um sujeito que se coloque no lugar certo e olhe o mundo a partir de seus próprios olhos. Até então, tudo era símbolo e formulação canônica. Com Brunelleschi, o realismo começa a se tornar possível.
(É claro que aquela transformação tinha por aliados séculos de elaboração das coordenadas psíquicas, visuais, sociais, políticas, em uma série infindável de eventos que demandaria um levantamento impossível. Consta que a perspectiva – ou um sistema muito próximo do que conhecemos como perspectiva linear (ou cônica) – já estivera em uso desde a Grécia e a Roma antigas. Durante o expurgo que deu origem à Idade Média, esse conhecimento se perdeu, junto de grande parte da bagagem clássica, banida por ser pagã e interditada pela Igreja. Foram necessários inúmeros fatores para que a perspectiva, assim como outros elementos fundamentais do mundo greco-romano, tenham sido redescobertos naquele momento).

O paroxismo da estratégia de narratividade que a perspectiva possibilitou se daria quase um século depois de Brunelleschi, no afresco da Capela Sistina, de 1512, no qual Michelangelo pode ao mesmo tempo sintetizar na retórica da figuração o Antigo Testamento, e também codificar o conhecimento anatômico adquirido em sua prática de dissecação. O projeto do teto da Capela, de enorme envergadura, demonstra uma consciência talvez inédita do poder e das funções da imagem aplicados em suas diversas manifestações: síntese; alegoria, narratividade, etc. A perspectiva na arquitetura ficcional com que o artista organizou o espaço irregular da abóboda de cone do teto criou “molduras”, dentro das quais as figuras se apresentam em trompe l’oeil. Organizando deste modo a enorme dimensão do teto, Michelangelo potencializou a (quase física) aparição de seus personagens, em especial nas representações de Javé.
No estilo histórico posterior – o Maneirismo, essa função narrativa está absorvida e devidamente apropriada por seus maiores representantes: Tintoretto, Veronese, Parmingianino e Agnolo Bronzino, o que daria tema para outra reflexão.
Perspectiva e Realismo
Por fim, há uma vinculação indissociável entre o realismo e a perspectiva. Esta última deu conta de uma distorção definitiva da “realidade” – a fim de que se esta se tornasse verossímil. Todas as imagens artísticas são tributárias da perspectiva, mas é sabido que esta não fez mais do que possibilitar a “representação do real” – quer dizer, reconstruir as coordenadas de nossa experiência visual. Ao invés de nos dar o coelho, nos dá a cartola. O resto, quem faz é nossa mente.

A única realidade que podemos perceber é aquela que sofre a deformação da ficção; noutras palavras, aquela que está perspectivada por uma mediação ficcional. A organização racional do espaço permitiu que nele se reconstituísse elementos banidos da figuração – objetos prosaicos, pedras, ruas, pontes, detalhes nos tecidos, paisagens, etc – pedaços do cotidiano que recriam de tal modo uma ambientação orgânica dos personagens que sua interação na cena passou a proporcionou o tempo “narrativo” e a criação de uma “realidade figural” onde os seres existem dentro da tela, se movimentam e lá vivem suas vidas. A partir deles, como séculos depois o cinema iria propiciar, nos reconhecemos a nós mesmos.
Nunca é demais repetir que a perspectiva cria uma “ilusão de realidade” sendo não mais que um expediente matemático através do qual se coloca em cena nas obras relações proporcionais dos objetos e entre eles, que acabam por criar uma imagem estável capaz de reproduzir o modo pelo qual vemos o mundo – ou seja, com as linhas convergindo para um ponto de fuga diante de nós.
Já no que toca estritamente a representação do corpo, esta também é tributária da perspectiva, que a potencializou através de duas codificações, ambas evidentemente espaciais: uma de ordem bidimensional, outra tridimensional. Na primeira, o desenho deve dar conta de transpor a alteração de tamanho do objeto em perspectiva: se uma montanha está muito distante do observador, ela parecerá pequena; se o modelo está deitado diante do observador, sua cabeça parecerá menor em relação ao restante do corpo. A segunda codificação é relativa à dimensão de profundidade. Para resolver o desenho de um corpo, se faz necessário uma coordenada que informe sua expressão volumétrica: esta coordenada é a luz e sombra.

A Anatomia teve um papel prevalente na alteração do imaginário medieval obre o corpo. Em outro post, afirmamos que a Anatomia agiu como “dispositivo tecnológico” na Arte. A descoberta das leis que regiam a profundidade funcional do corpo – músculos, veias, nervos – alterou a forma como se representava (e como se percebia) a superfície da pele. Em outras palavras, o estudo do interior revelou (e recriou) o exterior e sua beleza, até então ignorada. É aí que a anatomia atuou como “desinvençao”, uma vez que teve de desaparelhar a visão medieval sobre a figura e construir outra. Introduzindo também nesta área a experiência, a Anatomia desestruturou todo o arsenal religioso que condicionava o corpo e sua representação e os substituiu por outra sensibilidade e outra ordem de exigência racional, baseada na observação.
[Revisão e repost de nossa publicação original
em 28 de novembro de 2016 no site Filosofia do Design]
[1] Vide o livro de Paul Walker sobre o itinerário de pesquisas de Brunelleschi (WALKER, P. A Disputa que mudou a Renascença: como Brunelleschi e Ghiberti marcaram a história da arte. Rio de Janeiro: Record, 2005).
5 comentários em “O lugar da experiência na arte”