Dedico esse post à artista Ise Feijó, como incentivo a sua produção (não é uma montanha, mas é uma prova de amor)…
Os problemas que surgem quando nomeamos certa produção como “arte de mulheres”, “arte feminina” ou “feminista” revelam a colonização e os limites de nossa própria língua. Afinal, são as lacunas da linguagem os traços mais sintomáticos do modo como concebemos (ou deixamos de conceber) as coisas. Por que não temos uma “arte de homens” (ou essa é a única que existe)? Nem é preciso dizer que a História da Arte, como a conhecemos, é uma construção machista. Porém, quando a produção contemporânea realizada por mulheres é posta em perspectiva, assume um protagonismo sem precedentes. E esse quadro tende a alterar o eixo patriarcal da história.
O estudo in loco em cadáveres, realizado há séculos para compreensão profunda do corpo humano, tem efeito de despertar o interesse pela figura, tema tão prolífico nas Artes Visuais, além de qualificar a visão do artista. A percepção correta dos volumes do corpo depende em certa medida do conhecimento anatômico. Nesta aula de Anatomia Artística, estudaremos todos músculos de superfície e ossos constituintes do esqueleto, bem como suas principais articulações. Leia as instruções abaixo…
Recentemente o artista italiano Nuncio Paci criou uma série de trabalhos dedicados ao Barroco, no seu estilo bem próprio onde expõe o corpo “vivisseccionado”. A Anatomia é parte essencial do repertório do artista, sendo tematizada em sua obra como um elemento estético.Continuar lendo “Os artistas e a Anatomia”
A cada bloqueio que sofro no Facebook (esta é a quinta vez), minha primeira sensação é de incompreensão. Depois de um mês bloqueado, é impossível não relativizar a importância desta rede social que, vista à distância é bem insignificante mesmo. Porém preciso dela para exercer minha profissão, a qual me leva de tempos em tempos a ser censurado por um algoritmo: sou artista visual e minha temática é a representação do corpo. Além disso, há 15 anos ministro oficinas de desenho da figura humana com modelo vivo: a nudez, portanto, está tão presente em meu trabalho, onde ela é de tal modo naturalizada – que o cinismo da “lógica” dos algoritmos sempre me deixa confuso.
“É no simbólico que o desejo se engatilha”. Este enunciado, que remete à psicanálise de Lacan, revela o seguinte: o mundo da linguagem é onde o desejo toma forma. Sem imagem, nossos anseios, medos e percepções não encontram recursos de auto-expressão: deixam de ser elaborados formalmente. Quer dizer que a experiência não se processa, senão por meio da “narrativa” ou registro no universo simbólico. Feito o registro, a experiência pode funcionar como moeda de troca social, pode ser compartilhada, pode se realizar enquanto experiência factual. Para o desenhista, este saber é essencial.Continuar lendo “O lugar da experiência na arte”
Este é o vídeo piloto da nova série onde procuramos extrair da prática desenhística saberes para além de conteúdos técnicos do Desenho. Desapego, resiliência, alteridade, criatividade e auto-análise são alguns dos elementos que investigaremos, sempre em torno das lições que aprendemos desenhando.
Uma questão que deve ser permanentemente pautada na reflexão artística contemporânea, com especial interesse à fotografia é, sem dúvida, a da representação. Quando parece estar equacionada, volta à tona na próxima Bienal ou no próximo salão do MEAM. Não basta conhecermos a desagregação do sistema de representação que teve lugar no final do século XIX, seguida de experimentações e rearticulações dos padrões normativos da arte. A questão, colocada para os artistas do último século, chega também para nós; as respostas dadas no passado devem ser transformadas em novas interrogações, pois ainda hoje apresentam sérios desafios para fotógrafos e produtores de imagens em geral. Enquanto a geração de Marcel Duchamp e dos dadaístas era asfixiada pelo ambiente academicista e respirava uma modernidade que acabava de se abrir à especulação, a geração presente encontra ambiente totalmente diverso, à luz da experiência desconstrutivista pós-moderna. Creio que todo artista deve ao menos tentar elaborar em seu trabalho pessoal qual o “lugar” que nele assume a representação.Continuar lendo “FIGURA CONTEMPORÂNEA: A IMAGEM HOJE”
O esforço é grande, o homem é pequeno.
Eu, Diogo cão, navegador deixei este padrão
Aos pés do areal moreno, e para diante naveguei… FERNANDO PESSOA
É fácil se apropriar de novos conhecimentos… Difícil é desapegar-se de velhos hábitos! Um hábito adquirido é um vício: uma repetição do caminho inicial que leva ao prazer e nos mantem na ilusória zona de conforto. O destino dos produtores de imagem, porém é justamente o da insubmissão, da rebeldia do olhar que entrevê o avesso do cotidiano e arrisca, no espaço metafórico da representação, criar o novo.Continuar lendo “OUTRAS RELAÇÕES ENTRE FOTOGRAFIA E ARTE (Parte II)”
De quem é o olhar Que espreita por meus olhos? Quando penso que vejo, Quem continua vendo Enquanto estou pensando?
FERNANDO PESSOA “De quem é o olhar” | 1917
Certa vez, cruzando um parque, Einstein indagou a um transeunte que passava: “Com licença, cavalheiro, poderia me dizer se eu vim da direita ou da esquerda?” O homem, intrigado, respondeu: “Ora, o senhor veio da direita…” – ao que Einstein responde: “Ah sim, então já almocei! Obrigado…” A história, tirada de uma biografia de Einstein, é verdadeira e nos informa o nível de abstração em que o físico vivia. Chama atenção também um outro detalhe: o físico que explicou as relações entre espaço e tempo era incapaz de perceber a realidade mais prosaica a sua frente. Em conexão com o poema secular de Pessoa – que questiona quem “vê por nós” enquanto pensamos – a distração desses homens de gênio expõe uma problemática que é central no Desenho: quando pensamos, não estamos vendo.
Desver
DIEGO FAZIO, “Informazioni” 2013 | Matita e aquarela sobre papel
Nascemos cegos; nosso primeiro desenho não será expressão daquilo que vemos, mas sim do que imaginamos. Daí que desenhar não é ver; é desver: faz-se necessário desconstruir todo o imaginário criado por nós acerca de cada objeto do mundo. É sabido que carregamos previamente uma forma interior das coisas, muitas vezes antes mesmo de conhecê-las. Bastam os desenhos infantis: crianças do mundo inteiro representam em seus desenhos, de forma quase idêntica, árvores, planetas, estrelas, pessoas e até mesmo casas, ruas e quartos – mesmo sendo esses tão diferentes em seus contextos originais.
ERIN ANDERSON, 2015 | “Karen Looking”; “Heather in Hiding” (óleo sobre madeira)
Somente depois de ter desmontado o aparato de tipificações e estereótipos é que conseguirá enxergar o modelo em sua dimensão física – como uma organização de planos em profundidade sob a luz: será capaz de desenhá-lo sob uma ótica “realista”, digamos assim. Mas então, alguma coisa acontece... Algo trava esse desenvolvimento: o objeto está ali, o desenhista é capaz de enxergá-lo, desenha todos os detalhes… porém alguma coisa não vai bem. O modelo fica sem volume, desproporcional, sem vida.
É chegada a hora da desinvenção: é preciso ver além do que ali está – ver os elementos que, compondo o objeto, não se apresentam imediatamente em sua aparência física. É o caso da Anatomia Artística, por exemplo; das técnicas do desenho, do domínio dos materiais e especialmente de certa compreensão que permite ao desenhista “alterar a realidade a fim de que ela pareça verossímil”.
Assim é que o desenhista não representa um amontoado de detalhes – isso quem faz é o amador. O desenhista opera uma síntese plástica das características do modelo, algo bem diferente do que apenas “copiar” aquilo que vê.
Nesta série de vídeos em nosso canal, pretendo abordar o tema, variando a abordagem com recursos visuais:
ERMILO ESPINOSA, “la Ventana” 2011 | Óleo sobre tela (140 cm x 180 cm)
Parte do conteúdo teórico a ser ministrado no curso “Desenhos do Corpo” (Porto Alegre | 28 de Abril a 23 de junho | 2017) Mais informações aqui!
ANA TERESA FERNANDÉZ, “Erasure” | 2016, óleo sobre tela, (182.9 X 248.9 CM)
“O século XIX, como sabemos, é amplamente uma invenção de Balzac. (…) Estamos simplesmente continuando, com notas de rodapé e adições desnecessárias, o capricho, a fantasia ou a visão criativa de um grande romancista. (…) o que vemos, e como nós o vemos, depende das Artes que nos influenciaram”.
OSCAR WILDE A Decadência da Mentira (1889)
No século XIX, a literatura era o “instantâneo” capaz de codificar com clareza a realidade social. Hoje, a fotografia revela de maneira privilegiada como nossa interlocução com o mundo acontece. O fenômeno selfie, p ex. é um indício que coloca a fotografia no centro da visualidade, indicando uma nova forma, muito particular, com que dialogamos com o mundo presente. Assim também a forte incidência de um realismo fotográfico em diversos campos da imagem – jogos, séries, publicidade e nas próprias Artes Visuais, coloca a fotografia num lugar de destaque na construção da experiência estética contemporânea.
PAU MARINELLO (detalhe da série “Brave New World”) | mixed media sobre papel
O Desenho opera mediações entre inúmeros paradoxos, já desde o lugar do desenhista: um espaço entre duasexperiências – a experiência que advém no momento de ver; e outra, aquela que se deseja provocar no olhar do expectador. O objetivo último do desenhista é processar (recriar plasticamente) a experiência visual que recebe, de modo a fazer conhecer ao espectador também essa experiência. Assim, desenhar é viver experiências (no sentido de processá-las) e reproduzir experiências.Continuar lendo “OS PARADOXOS DO DESENHO: NOTAS PARA UMA EPISTEMOLOGIA”
O Desenho é uma prática que se confunde à história das civilizações, dado a extensão histórica e geográfica de sua expressão. Sua abrangência impõe uma compreensão associada à própria organização societal, devendo-se incorporar em sua interpretação um viés filosófico para além da mecânica da técnica. A natureza criativa desta atividade e a complexidade das operações de síntese que a compõem (formais e conceituais) impedem que seja reduzida a um mero debate de materiais. No presente texto apresentamos algumas elaborações que podem servir de premissas para uma enunciação epistemológica dos limites e prerrogativas dessa artesania que instrumentalizou o imaginário humano desde tempos imemoriais.Continuar lendo “DESENHO ALÉM DA TÉCNICA: PARA UMA EPISTEMOLOGIA DO ARTESANAL”
Parte do conteúdo teórico a ser ministrado no Workshop “Desenho de Retrato” (Porto Alegre| 14, 15 e 16 de Dezembro | 2016) Mais informações aqui!
RICHARD MORRIS, Sem título 2 | carvão sobre papel, 2014
Ao desenho de Retrato se atribui de antemão uma dificuldade natural. A primeira tarefa do desenhista que se ocupa deste gênero é, portanto, desmistificar essa crença compreendendo precisamente em que consiste essa dificuldade. As causas são de ordem tanto plástica (formal), quanto simbólica (conceitual). As primeiras dizem respeito à bem conhecida dificuldade do “detalhe”. Desenhar detalhes é difícil porque são partes que vemos menos – as soluções de síntese tornam-se assim muito obtusas. Noutros termos: a abstração intrínseca às soluções formais é maior. Por exemplo, por que nunca ficamos bem em retratos 3×4; por que sequer se parecem conosco? Justamente porque em retratos muito pequenos a síntese realizada é muito extrema e faz com que tenhamos que eliminar vários elementos da face.Continuar lendo “QUAL O SENTIDO DO DESENHO DE RETRATO?”
O artista e crítico francês André Lhote diz que “a beleza do corpo está nas articulações”. Diz mais, ao afirmar que a supremacia dos artistas renascentistas em relação aos góticos do período anterior reside no conhecimento que aqueles possuíam de artrologia – ciência que estuda a forma com que os ossos se articulam uns aos outros.
É sabido que não basta conhecer as partes constituintes do tecido esquelético para se desenhar bem a figura. O diferencial necessário está na capacidade de o artista projetar o movimento em seu modelo – que no corpo é resultado da forma específica de suas articulações. São elas que possibilitam os movimentos que a musculatura irá operar no esqueleto.
A Anatomia Artística é um método cada vez mais presente no ensino do desenho – aliás, sua presença de fato retorna de um passado longínquo, que no Brasil teria encerrado suas atividades por volta de 1970. Ela, porém nunca foi abandonada de todo, e é capaz de mediar ainda o conhecimento que hoje se tem da figura. Constando como disciplina da grade normal no magistério brasileiro desde 1947, até recentemente era visto em alguns currículos de graduação em Artes, ainda que apenas pro forma. Seu ensino efetivamente direcionado à arte é ainda raro no Brasil, mas no exterior faz parte regular dos conteúdos práticos do artista.
Atualizamos diversas referências de Anatomia Artística a fim de auxiliar o desenhista iniciante. No seguinte link oferecemos dezenas de sites relacionadas ao desenho do Corpo – guias de desenho da figura e manuais de Anatomia, centenas de imagens de modelos em alta resolução, e links diversos – tudo para download. No link há ainda uma lista de artistas que atualmente trabalham com a “representação realista” do corpo, com uma sessão especial dedicada à arte brasileira contemporânea. Bom estudo!
Desenho é síntese: transmutação da substância inerte dos materiais expressivos em “signos”, e consequente apropriação dos elementos sígnicos em linguagem visual. O modo como ele opera passa pela reconstituição da impressão sensível, recriando as coordenadas da experiência visória. Para desenhar é, portanto, necessário criar – não a identificação (mera similitude entre desenho e coisa desenhada), mas a estesia sentida na apreciação estética do mundo. É por essa via que o desenho realiza sua destinação mais profunda: a geração de sentido.