
O esforço é grande, o homem é pequeno.
Eu, Diogo cão, navegador deixei este padrão
Aos pés do areal moreno, e para diante naveguei…
FERNANDO PESSOA
É fácil se apropriar de novos conhecimentos… Difícil é desapegar-se de velhos hábitos! Um hábito adquirido é um vício: uma repetição do caminho inicial que leva ao prazer e nos mantem na ilusória zona de conforto. O destino dos produtores de imagem, porém é justamente o da insubmissão, da rebeldia do olhar que entrevê o avesso do cotidiano e arrisca, no espaço metafórico da representação, criar o novo.

Daí que o desafio central do produtor de imagens não é propriamente aprender e aplicar as operações da técnica, mas justamente desfazer-se daqueles costumes que o afetam positivamente (uma vez que, dominados, são dóceis as suas vontades). Estamos falando daqueles vícios que, como as gírias, diminuem o repertório da linguagem e, por consequência, a capacidade expressiva.
Apego é como se chama o medo de perder esses velhos enredos. Soluções que um dia foram conquistas adquiridas, hoje apenas dificultam a transformação, as transições para o novo (e necessário). Esse sentimento esconde outro: medo da renúncia. Como dizia o poeta Fernando Pessoa, “Quem quer passar além do Bojador/tem que passar além da dor”. Ou ainda, “navegar é preciso, viver não é preciso” – ou seja, é necessário renunciar ao itinerário cotidiano do olhar para (vi)ver.

Na fotografia, esse “olhar” se revela através do lugar do fotógrafo. Esse produtor de imagens, assim como o pintor, expressa seu ponto de vista (incluindo aí sua situação em relação ao mundo, sua opinião, seu posicionamento geopolítico e afinidades) no enquadramento – entendido aqui não apenas como recorte da composição, mas também escolha e abordagem temática. No enquadramento, ou seja, no lugar em que se posicionou para tirar a foto, está implícito como o fotógrafo pensou apresentar aquela situação – de onde se conclui a maneira como o autor se relaciona afetivamente com o tema. Em fotografia, o lugar é essencialmente revelador.

Esse lugar, no entanto, não está na foto; por isso pode atuar como instrumento ideológico. O lugar onde o fotógrafo se posiciona emula o lugar e a condição do próprio observador, transferindo a ele os pontos de vista apresentados. Toda foto é uma recriação das coordenadas da experiência do fotógrafo – coordenadas que possibilitam ver o que o fotógrafo viu e, de certa forma, pensar e sentir como ele. A explicação de nossa rejeição a certas imagens não está apenas na eventual recusa do tema, mas na experiência de sentirmos daquele modo, na sensação de cumplicidade que uma foto repugnante nos induz.

O que o pintor pode manipular à vontade na tela, compondo e elidindo personagens e cenários, o fotógrafo, em tese, encontraria já determinado pelo cenário. Friso: apenas “em tese”. O fotografo também é um produtor livre de imagens, que pode e de fato manipula o olhar de seu observador, não estando submetido totalmente às condições que encontra no meio. Bons fotógrafos normalmente superam os determinantes do ambiente e apresentam não a realidade que encontram no local, mas o modo como veem e desejam expor aquela realidade.
A manipulação jornalística faz isso diariamente; mas seus fotógrafos não são produtores de imagens e de símbolos: são produtos da ideologia, replicadores de imagens; “diluidores”, segundo a categoria de Ezra Pound. Falamos neste post da fotografia que se entende como arte e que não encontra nos dados do contexto limitações para a expressão; do contrário, encontra nos elementos do contexto sua própria significação e justificativa. Afinal, a imagem é o terreno do simbólico – o produtor de imagens deve procurar o significado da aparência, não a aparência instável do signo.

Leia aqui a “Parte I“
Abordaremos essas e outras propriedades da imagem no curso “Um olhar fotográfico através da arte: aprendendo a decifrar o significado das imagens” a ser aplicado na ESCOLA CÂMERA VIAJANTE, entre 15 de maio e 21 de Agosto de 2017. Palestra gratuita de apresentação dia 08/05/2017 às 19h.
foto da capa | ROGER BALLEN
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