OUTRAS RELAÇÕES ENTRE FOTOGRAFIA E ARTE (Parte II)

VIVIAN MAIER
VIVIAN MAIER

O esforço é grande, o homem é pequeno.
Eu, Diogo cão, navegador deixei este padrão
Aos pés do areal moreno, e para diante naveguei…
FERNANDO PESSOA

É fácil se apropriar de novos conhecimentos… Difícil é desapegar-se de velhos hábitos! Um hábito adquirido é um vício: uma repetição do caminho inicial que leva ao prazer e nos mantem na ilusória zona de conforto. O destino dos produtores de imagem, porém é justamente o da insubmissão, da rebeldia do olhar que entrevê o avesso do cotidiano e arrisca, no espaço metafórico da representação, criar o novo.

ROBER BALLEN
ROGER BALLEN

Daí que o desafio central do produtor de imagens não é propriamente aprender e aplicar as operações da técnica, mas justamente desfazer-se daqueles costumes que o afetam positivamente (uma vez que, dominados, são dóceis as suas vontades). Estamos falando daqueles vícios que, como as gírias, diminuem o repertório da linguagem e, por consequência, a capacidade expressiva.

Apego é como se chama o medo de perder esses velhos enredos. Soluções que um dia foram conquistas adquiridas, hoje apenas dificultam a transformação, as transições para o novo (e necessário). Esse sentimento esconde outro: medo da renúncia. Como dizia o poeta Fernando Pessoa, “Quem quer passar além do Bojador/tem que passar além da dor”. Ou ainda, “navegar é preciso, viver não é preciso” – ou seja, é necessário renunciar ao itinerário cotidiano do olhar para (vi)ver.

Sebastião Salgado 003
foto | LEILA SALGADO//Amazonas/Sony Pictures Classics

Na fotografia, esse “olhar” se revela através do lugar do fotógrafo. Esse produtor de imagens, assim como o pintor, expressa seu ponto de vista (incluindo aí sua situação em relação ao mundo, sua opinião, seu posicionamento geopolítico e afinidades) no enquadramento – entendido aqui não apenas como recorte da composição, mas também escolha e abordagem temática. No enquadramento, ou seja, no lugar em que se posicionou para tirar a foto, está implícito como o fotógrafo pensou apresentar aquela situação – de onde se conclui a maneira como o autor se relaciona afetivamente com o tema. Em fotografia, o lugar é essencialmente revelador.

Sebastião Salgado 002
SEBASTIÃO SALGADO

Esse lugar, no entanto, não está na foto; por isso pode atuar como instrumento ideológico. O lugar onde o fotógrafo se posiciona emula o lugar e a condição do próprio observador, transferindo a ele os pontos de vista apresentados. Toda foto é uma recriação das coordenadas da experiência do fotógrafo – coordenadas que possibilitam ver o que o fotógrafo viu e, de certa forma, pensar e sentir como ele. A explicação de nossa rejeição a certas imagens não está apenas na eventual recusa do tema, mas na experiência de sentirmos daquele modo, na sensação de cumplicidade que uma foto repugnante nos induz.

Kevin Carter
Na polêmica foto que rendeu o Pulitzer ao fotógrafo Kevin Carter, a imagem nos coloca imediatamente na situação do fotógrafo, podendo nos fazendo sentir certa disposição de largar a câmera e espantar a ave.

O que o pintor pode manipular à vontade na tela, compondo e elidindo personagens e cenários, o fotógrafo, em tese, encontraria já determinado pelo cenário. Friso: apenas “em tese”. O fotografo também é um produtor livre de imagens, que pode e de fato manipula o olhar de seu observador, não estando submetido totalmente às condições que encontra no meio. Bons fotógrafos normalmente superam os determinantes do ambiente e apresentam não a realidade que encontram no local, mas o modo como veem e desejam expor aquela realidade.

A manipulação jornalística faz isso diariamente; mas seus fotógrafos não são produtores de imagens e de símbolos: são produtos da ideologia, replicadores de imagens; “diluidores”, segundo a categoria de Ezra Pound. Falamos neste post da fotografia que se entende como arte e que não encontra nos dados do contexto limitações para a expressão; do contrário, encontra nos elementos do contexto sua própria significação e justificativa. Afinal, a imagem é o terreno do simbólico – o produtor de imagens deve procurar o significado da aparência, não a aparência instável do signo.

ROBERT CAPA | The Falling Soldier
ROBERT CAPA | The Falling Soldier
Leia aqui a “Parte I

Abordaremos essas e outras propriedades da imagem no curso “Um olhar fotográfico através da arte: aprendendo a decifrar o significado das imagens” a ser aplicado na ESCOLA CÂMERA VIAJANTE, entre 15 de maio e 21 de Agosto de 2017. Palestra gratuita de apresentação dia 08/05/2017 às 19h.

Flyer virtual, Câmara Viajante02

Infos para web

foto da capa | ROGER BALLEN

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Publicado por Gustavot Diaz

Artista visual e escritor, co-fundador do espaço artístico MÍMESIS | Conexões Artísticas em Curitiba, e ministrante do curso Processos Poéticos. Vive atualmente em Porto Alegre (RS).

2 comentários em “OUTRAS RELAÇÕES ENTRE FOTOGRAFIA E ARTE (Parte II)

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