DESENHO: A coisa sem conceito (Parte 2)

O pintor que traduz por prática e julgamento dos olhos, sem raciocínio, é como o espelho onde se imitam as coisas mais opostas sem conhecimento da sua essência.

Leonardo da Vinci (Atl. 76 r.a.)

No post anterior dissemos que a única “língua” capaz de vocalizar o desenho Realista é o escalonamento de valores tonais – ou seja, os dégradés que criam coordenadas de volume no plano bidimensional do papel. Com o volume, porém, podemos criar uma terceira e também uma quarta dimensão: o tempo.

NORMAN ROCKWELL | "The The Connoiseur" (óleo sobre tela, 1962)
NORMAN ROCKWELL | “The The Connoiseur” (óleo sobre tela, 1962)

A fim de justificar a suposta supremacia do Expressionismo Abstrato sobre o Realismo no pós-guerra, o crítico Clement Greenberg (trabalhando sob subvenção da CIA[1]), baseou-se na ideia de que a perspectiva desrespeitava a “inelutável planaridade da superfície”. Sendo o plano bidimensional “único e exclusivo da arte pictórica”, Greenberg inferia que a verdadeira arte devia extinguir a ilusão de espaço tridimensional – algo que Cézanne e depois os cubistas já haviam de certa forma operado, restituindo nesta ação um novo valor à figuração (ao invés de suprimi-la). Para Greenberg e suas teorizações, Jackson Pollock era o modelo ideal de artista, uma vez que sua pintura (no fundo apenas tinta “atirada” literalmente sobre as telas no chão) mantinha a então “inelutável planaridade da superfície”…

A questão de que falaremos é o fator tempo no desenho e na pintura. O abstracionismo de Pollock não por acaso encontra expressão nos Estados Unidos, justamente durante a Guerra Fria – onde a intenção político-cultural norte-americana deu-se em duas frentes: a primeira, de importância máxima, era o combate ao comunismo que se manifestava com enorme força por meio do Realismo Russo e do Muralismo Mexicano (este nas barbas dos EUA); a segunda era fomentar uma arte nacional que se pudesse exportar. O que explica a perseguição do período ao Realismo é o fato de que ele possui a capacidade de análise discursiva; é capaz de “contar uma história”. Por ser passível desta evocação “em palavras”, é a forma artística de “representação” por excelência. Você pode descrever a alguém uma tela realista que viu em um museu, informando-o acerca “do que se tratava” a pintura – mas teria dificuldade se fosse uma obra abstrata. Para esta última, mais fácil seria contar o que se “sentiu”.

JOSÉ CLEMENTE OROSCO, um dos idealizadores do Muralismo mexicano, junto de David Alfaro Siqueiros e Diego Rivera
JOSÉ CLEMENTE OROSCO, um dos idealizadores do Muralismo mexicano, junto de David Alfaro Siqueiros e Diego Rivera

O Muralismo Mexicano, profundamente referenciado no povo latino com forte ressonância de sentido político, criava um sentimento de identificação imediata com seu público – por assim dizer, os mexicanos olhavam para os painéis e compreendiam sua trajetória histórica através da síntese retórica que a pintura exprimia. Os murais “contavam algo”, objetivando a socialização do conhecimento e geração de consciência política. A arte de Pollock (e de todo o abstracionismo da época) não “dizia” nada.

Claro que ambos usavam o binóculo da filtragem, com intenção propagandista: a action painting  (definição de H. Rosenberg para o “estilo” livre de aplicação de tinta, cuja ênfase era a fisicalidade gestual do artista) estava identificada positivamente com a ideia de “moderno”, de progresso industrial e desenvolvimento tecnológico, agilidade, rapidez e autossuficiência – valores do “sonho americano de liberdade” que, segundo os vencedores da Segunda Guerra, só poderia existir na economia capitalista de mercado do ocidente.

Para este breve artigo sem pretensões filosóficas, simplificamos bastante essas questões. Não negamos a validade do Expressionismo Abstrato, que aparece em larga escala sob inúmeras formas, e encontra novos sentidos até os dias de hoje. É evidentemente legítimo como experimentação, sendo seu aparecimento até certo ponto “previsível” na história da arte… Vendo-se retrospectivamente: o primeiro passo foi a abolição da profundidade e da mimese (operada em grande parte por Cézanne). Daí, um segundo passo seria inevitável – a supressão da figura. Também não negamos que o Expressionismo contenha em si certa potência. Como dizia a mestra Fayga Ostrower (uma abstracionista): “não é porque não representa nada que não signifique algo”[2].

FRANCES STONOR SAUNDERS, livro onde são demonstradas as ligações de Jackson Pollock, Clement Greenberg e inúmeros outros artistas e intelect com auais com CIA durante a Guerra Fria, constando inclusive na folha de pagamento da agência norte-americana
FRANCES STONOR SAUNDERS, livro onde são demonstradas as ligações de Jackson Pollock, Clement Greenberg e inúmeros outros artistas e intelectuais com CIA durante a Guerra Fria (constando inclusive na folha de pagamento da agência norte-americana)

O tempo, como dizíamos, atribui função discursiva à obra, função essa expressa no Realismo por meio da perspectiva. Elidindo esse elemento da arte e inviabilizando o recurso de “se contar algo”, , Greenberg criava uma arte destituída de intenção política – voltada exclusivamente à subjetividade e expressão imediata do artista: o modelo mais conveniente aos EUA num contexto de guerra ideológica. Criando dimensão espacial, a perspectiva emula eventos que se dão no tempo e no espaço (tempo não plástico, mas mimético, capaz de ser “verbalizado”), podendo assim reportar histórias. Por essa razão, os Estados nacionais desejosos de contar sua saga sob a especificidade comprometida de determinada ótica, geralmente adotam a figuração realista como “arte oficial”.

Essa dimensão da função temporal que a perspectiva possui pode se dar também no abstracionismo; relações de espaço são relações de tempo. Mas no terreno da abstração, como no da música, o “dizer” se elabora em pathos; pode ser apropriado indistintamente, ao sabor do gosto subjetivo do expectador. É claro que essa função já havia sido compreendida pelos mestres do passado; é conhecida desde as primeiras representações panorâmicas da cidade, como as belíssimas vistas dos irmãos Lorenzetti, na Veneza do século XIII:

AMBROGIO LORENZETTI |"O bom e o mau governo da cidade" (1337/40).
AMBROGIO LORENZETTI |”O bom e o mau governo da cidade” (1337/40). Aqui a função temporal estrutura a visão organizando a composição da esquerda para a direita, no sentido da leitura. A apreciação do afresco é regulada pela coordenada “tempo”.

Tintoretto, com sua “inteligência infernal” (conforme a expressão de Andre Lhote), usava desse recurso com admirável sucesso descrevendo eventos transcorridos no tempo que iam sendo evocados por meio da perspectiva . Na obra A Descoberta do Corpo de São Marcos (Veneza, 1562-66) Tintoretto compila diversos momentos da narrativa, coligindo no plano pictórico tempos distintos – essa articulação narrativa do “tempo” regula a dinâmica da observação.

TINTORETTO | "A Descoberta do Corpo de São Marcos" (1548)
TINTORETTO | “A Descoberta do Corpo de São Marcos” (1548)

Em outro texto abordamos sucintamente a invenção da perspectiva por Brunelleschi no século XV – técnica que protagonizou o surgimento da Renascença. A perspectiva vertebrou o Realismo. Como exige profundo conhecimento da teoria de sombra e luz e modelamento tonal, aferição e relações geométricas de proporcionalidade, constitui em si o conteúdo mais essencial do desenho: é a sua espinha dorsal, por assim dizer.

Eliminando a perspectiva, o Expressionismo Abstrato privou a arte de sua capacidade de “contar histórias”. Estava afinado com seu contexto, é claro: a suspeição em relação aos processos revolucionários, o estabelecimento do imperialismo estadunidense e a primazia do individualismo, o combate ao comunismo, a busca de uma pretensa liberdade aos novos “consumidores” e aos artistas (produtores) – e ao mesmo tempo uma farsesca “recusa dos valores burgueses” – fez com que o aparecimento da abstração (inconcebível poucas décadas antes), se tornasse possível, e desde então aceitável. Mas isso não sem oposição: reações negativas da população num primeiro momento; congressistas mais tradicionais do senado pretenderam negar subsídios à arte abstrata; o lançamento do “Manifesto da Realidade” – encabeçado por Edward Hopper e assinado por meia centena de artistas, opunha-se ao predomínio dos canais de veiculação que propagavam o ideal expressionista e a negação da arte figurativa e realista (hoje sabemos que a maior parte daqueles veículos de mídia e aparelhos culturais eram financiados pela CIA) .

Greenberg limitava a importância da arte anterior a Pollock, desde o Renascimento, porque aquela se beneficiava da ilusão de profundidade, ferindo a “inelutável superfície da tela”. De fato, um dos que melhor proveito tiraram da perspectiva foi Leonardo da Vinci. Ele sabia que existia algo “entre observador e objeto” – e que essa distância entre ambos produzia certos efeitos ópticos, como a deformação do tamanho das figuras e o esbatimento de seus contornos. Séculos antes de sua comprovação científica, Leonardo intuiu a “atmosfera”.

Mona_Lisa
“Sfumato”: técnica de sombreamento cujo objetivo era recriar a sensação atmosférica, esbatendo o contorno das pinceladas

Ainda que operada com grande beleza por Filippino Lippi, Masaccio, Masolino, Nanni di Banco e Alberti; seguidos da geração de Andrea Verrocchio, Pollaiolo e Piero della Francesca, foi de fato em da Vinci que a perspectiva chegou a um nível de excelência. O fundo da Monalisa e a sutilíssima gradação tonal em sua pele (que elimina marcas da pincelada por meio da aplicação de inúmeras camadas de velaturas) é um exemplo notável de sucesso na operacionalização da perspectiva. Leonardo procurou procedimentos técnicos para representação dos efeitos atmosféricos; a tradição atribui a ele o sfumato – procedimento que elimina as marcas do pincel e do lápis no desenho).

Quando o desenho desaparece; aparece a figura. Se os traços do lápis foram subsumidos em manchas, a ilusão de perspectiva é bem sucedida. Na figura humana, a perspectiva se chama “escorço”.

O contraste é outra demanda da perspectiva também observada por da Vinci. Quanto mais próximo do espectador estiver a figura, maior deve ser o contraste (uma vez que a luz incidente é mais intensa e perceptível); o que está longe, no entanto, se faz menos visível, uma vez que a diminuição da incidência luminosa o torna visualmente menor. O fundo da Monalisa tem menos contraste que a personagem em primeiro plano. Essa é uma exigência chave para a criação de coordenadas à visão.

Outros pressupostos ainda para aplicação da perspectiva só foram descobertos muito mais tarde, como a perspectiva cromática ou tonal.

 

[1] SAUNDERS, Frances Stonors. A CIA na Guerra Fria da cultura. Record, São Paulo, 2008.

[2] Vide: OSTROWER, Fayga. Universos da arte. Editora Campus, São Paulo, 1983.

 

 

Este e outros conteúdos serão ministrados no WORKSHOP | DESENHO : A Coisa sem Conceito

FB, Flyer, cartaz, A Coisa sem Conceito

http://wp.me/p5MTN5-2l

 

Imagem da capa: RÓMULO CELDRÁN | “Zoom XXI” (lápis e acrílico sobre madeira, 2013)

Publicado por Gustavot Diaz

Artista visual e escritor, co-fundador do espaço artístico MÍMESIS | Conexões Artísticas em Curitiba, e ministrante do curso Processos Poéticos. Vive atualmente em Porto Alegre (RS).

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