Nunca aprendi a existir.
Fernando Pessoa
A diferença entre a articulação processual chamada “técnica” e a estruturação “tecnológica”, é que enquanto, a primeira repete procedimentos metodológicos já avaliados, a segunda demanda a criação de novos saberes a fim de desenvolver-se (e desenvolve-se justamente na medida em que cria esses saberes). O exemplo mais claro disso é o telescópio – criado nos Países Baixos e elaborado por Galileu Galilei. No instante em que este cientista alterou seu uso comum, executando um gesto que iria revolucionar não apenas a ciência, mas a concepção da humanidade sobre si mesma ao girar o telescópio em 90º a fim de investigar as estrelas – o telescópio imediatamente passou a demandar novas técnicas para aperfeiçoamento da lente, o que deu início a novos estudos em Ótica e Astronomia e ciência em geral. Como sabemos, as observações de Galileu forneceram, entre outros, evidências da rotação da Terra. O telescópio é assim literalmente um aglutinado de observações que geram novas possibilidades de observação e perspectivas; essas retroativamente alimentam e alteram o uso do próprio telescópio.

Podemos entender também o desenho como uma forma “tecnológica” do saber, uma vez que agrega novos conhecimentos no decurso do fazer: requer não apenas instrumentos, mas atitudes diversas perante seus modelos e objetos de estudo. Quando o desenhista conquista certo nível técnico, sua produção passa a demandar um novo alcance técnico – seja incrementando materiais expressivos, seja rearticulando seu olhar sobre o desenho e sobre a própria realidade.
O “desenho” se realiza em sua plenitude na medida em que o aperfeiçoamento técnico acompanha o envolvimento do olhar do desenhista.
Uma palavra resume o que gostaríamos de dizer: “admiração”. Este verbete latino provém de miração = “mirare”, “olhar com espanto” (proveniente de mirus = “maravilhoso”). Mirar não é apenas olhar ou apontar: é ter consciência de estar diante de algo espantoso, ou melhor, ter ciência da natureza miraculosa das coisas, aquilo que faz o que nelas nos espanta; é ter certo sentimento do imprevisível. O desenhista deve estar preparado não apenas para ver, no sentido estrito da palavra, mas apto para surpreender-se diante daquilo que vê.

A realidade fenomênica só pode atingir a transcendência artística através do verdadeiro instrumento do desenho: que certamente não é o lápis – mas o olho do desenhista. Quando o artista olha para um objeto, é a sua capacidade de ser surpreendido por ele que permite que expresse a dimensão estética ali presente. Esta não está nunca no limiar comum das coisas, mas sim em seu significado.
É cada vez mais comum o crescimento de certo tipo de desenho hiper-realista que se atém à aparência imediata dos objetos e modelos. Sobretudo pela pouca reflexão que evidencia em relação ao que é visto, esse tipo de desenho requer pouca reflexão do observador. É possível que cause admiração pela técnica – ou seja, pela capacidade mimética de reprodução; mas pouca admiração suscita, porém quanto ao que é representado. O objetivo da arte, seja qual for, passa pelo universo do simbólico, pelos significados que atribuímos, ou deixamos de atribuir à coisas.
É para chamar atenção e reativar o “espanto” do observador que os objetos merecem ser desenhados.

O desenho da figura humana, em especial, tem uma trajetória espetacular que se confunde com a História da Arte, e constituiu durante muitos séculos os caminhos do próprio pensamento estético. Conjunção de inúmeros visões de artistas sobre seu principal tema – o corpo humano e suas possibilidades expressivas geraram novos olhares sobre os modelos, inaugurando formas de visão inéditas que desvendaram perspectivas acerca de nós mesmos. Por exemplo, quando a escultura grega chamada Grupo de Laocoonte – dos escultores Agesandro, Atenodoro e Polidoro – foi criada (40 a.C.) significou a mais alta síntese das culturas em trânsito entre Oriente e Ocidente. Seu nível de realismo na tensão da musculatura e nas expressões dos personagens modificou o olhar sobre o corpo no período helenístico. Depois disso, curiosamente a escultura ficou desaparecida por 1400 anos.

Quando redescoberta, no ano de 1506 em Roma – uma época onde justamente se reabria o diálogo com o Oriente através de rotas comerciais – a estátua de Laocoonte consolidou um olhar revolucionário sobre o corpo, uma vez que, não por acaso, foi encontrada em um lugar e em um momento nos quais a representação da Anatomia e a da cinética (o movimento da figura) era perseguida como o ideal artístico supremo. Esta obra foi literalmente desenterrada do pátio Belvedere sob o olhar pasmo de artistas, incluindo Leonardo da Vinci e Michelangelo, ambos presentes durante a escavação. Ao verem-na, receberam uma valiosa lição de artrologia e expressão corporal que passou a integrar imediatamente o repertório de imagens daquele e dos períodos posteriores. Winckelmann, Goethe, Lessing e os classicistas do século XVIII utilizaram-na como ilustração prática da teoria estética do Neoclassicismo.
Assim é que uma obra que surge da profunda observação da realidade – sobretudo da rearticulação dos dados do sensível – reorganiza as disposições estéticas, demandando novos modos de percepção. Mas isso apenas se dá quando o artista não se deixa levar pela invisibilidade do óbvio, considerando que os elementos visuais não estão dados no real – mas restam por ser criados. Tudo é obsoleto para um olhar velho. Na forma plástica, a imagem morre, só e muda “em estado de dicionário”[1], para renascer em um olhar novo.
[1] Carlos Drummond de Andrade, Procura da Poesia, in “A Rosa do Povo”.
Parte do conteúdo a ser ministrado no Workshop
“O Corpo Humano na Arte: Como (e por que) desenhar?” (Joinville, 15, 16 e 17 de Janeiro de 2016, Conservatório Belas Artes)
imagem da capa | MICHAEL REEDY, 2015. “but prettier than ever” (mixed media sobre papel)










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