Dentre as expressões artísticas, o Retrato é, sem dúvida, a mais icônica. Utilizado por metonímia como sinônimo de “representação”, já no período anterior à era imperial, os romanos cultivavam na retratística um impressionante realismo. Este fato constitui um curioso “anacronismo”, se supormos que o ferramental e a disposição subjetiva realistas tenham se dado apenas a partir das condições criadas no Renascimento, ou apenas no século XIX (conforme aprendemos com Erich Auerbach). Porém, escritores da antiguidade já dedicariam estudos ao tema, tamanha era a autoconsciência do significado do Retrato – tanto na esfera pública, quanto privada. Essa pregnância temática garante-lhe autonomia de categoria plena dentre as expressões artísticas, e assim como o “nu” – o Retrato pode também ser considerado uma “forma mesmo de arte” (vide Kenneth Clark).

Mais do que outras, porém, a retratística traz consigo um perigo: a confusão entre os sistemas de “representação” e “apresentação”. Com seu poder de atração e capacidade de trazer à tona características físicas e psicológicas, retratados normalmente confundem-se com seus retratos. De um retrato de fulano, pode-se dizer: “é fulano”. Um “retrato falado” pode incriminar um suspeito de crime. Em seu próprio retrato, os sujeitos se reconhecem – quer dizer, identificam-se a tal ponto que o retrato passa a funcionar como referência da pessoa, e não o contrário. Vide a obsessão contemporânea dos selfies, onde a imagem se torna o objeto da experiência, e não o retratado (de fato, a imanência da presença do retratado na imagem propicia a confusão).
Vemos exemplos amiúde na literatura, como o famoso O retrato de Dorian Gray (1890), no qual Oscar Wilde concebe um retrato que se transforma em espelho moral do pintor. Outro exemplo, de grande força e sensibilidade, está na segunda parte do livro O Tempo e o Vento, de Érico Veríssimo (1951), denominada “O Retrato”. Nestes capítulos, Veríssimo revela o quanto a imagem se impõe à consciência dos sujeitos, afirmando a autoridade do retratado por meio da solenidade (ou aura) própria à pintura, oriunda de certa força misteriosa presente na efígie. No livro, através de seu retrato pintado a óleo pelo amigo Pepe, o Dr. Rodrigo Cambará – personagem central da obra – conjuga uma aura quase mágica, cujo espectro ronda constantemente ao longo de algumas centenas de páginas, num quase ensaio de constituição psicológica.

Estranhamente, na medida em que cria uma esfera de poder ao retratado, o retrato exaure o artista que o executou: o pintor espanhol Pepe passa a desconstruir-se enquanto sujeito após tê-lo pintado. O retrato é a sua “obra-prima”; seu sucesso jamais se repetirá, e tudo o mais que produz sofre por efeito de comparação. Constatamos esse efeito “mágico” do retrato também nas antigas “estátuas jacentes” – esculturas tumulares (bastante comuns a partir da Idade Média) onde o morto era tomado como modelo. Deste modo, a estátua funcionava como um substitutivo de sua presença física, com a finalidade de perpetuar sua autoridade moral no caso das efígies de reis, imperadores, etc.
“Todo retrato pintado com sentimento é um retrato do artista, e não do modelo”.
Esta frase de Oscar Wilde mereceria um complemento a propósito: “Todo retrato pintado com sentimento é um retrato do artista, e de como ele vê a si próprio…”, ou seja, deriva de uma percepção subjetiva, uma realização imaginária do outro, não sendo portanto justa a afirmação de que o “retrato de fulano é fulano”.
O que o desenho de Retrato faz é apresentar de forma organizada as percepções do desenhista; trata-se sobretudo da apresentação de uma forma até então inexistente (e que por isso não pode representar ninguém). Para além da técnica necessária, deve-se saber que o desenho não “representa” o desenhado, e a partir disso, assumir que se trata de elaborar plasticamente a visão de seu objeto de referência: seja o retrato de um parente, de um amigo, ou um autorretrato – será sempre apenas um Retrato.

A origem latina da palavra é retrahere, onde re = “para trás”, e trahere = “tirar, puxar”. A união dos dois termos indicaria algo como “tirar fora” uma imagem. Este significado, se lido pelo sentido de mimesis (espécie de duplo do modelo, uma “cópia” dele) faz com que o Retrato perca toda a força expressiva, senão sua própria substância artística. Mais do que tirar de um lugar e por em outro, um Retrato é resultado da reconstituição de traços que imaginariamente compõem uma percepção projetiva do artista em re(L)ação aos sujeitos de seus afetos: nunca deve ser reduzido à aferição técnica de medidas proporcionais.
Enquanto percepção subjetiva do artista, o Retrato não tem propriamente o poder de “representar” – mas o de propor indicações ou instâncias de “revelação”. Noutras palavras: uma posição política pode nos representar, por exemplo. Nela eu reconheço, senão a totalidade, ao menos parte do que sou, e posso me identificar pela complexidade de uma plataforma de proposições econômicas e sociais. Não somos somente aparência; não podemos ser efetivamente representados quando reduzidos através de projeções planas feitas de tinta. A força expressiva vem na medida da mímese, mas sua realização depende de uma série de contingências não subsumidas pela técnica – quando esta é superada no imprevisto do estilo, nas lacunas da intenção artística. Ai é que a “verdade” do retratado se apesenta e se mostra: o lugar em que certa verdade representativa de nós mesmos aparece é justamente onde não se espera.
Segue breve seleção de retratos contemporâneos (encontre aqui mais imagens):









Imagem da capa:
OLIVIER DE SAGAZAN | óleo sobre tela
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