“’PELE AGRIDOCE”: Inicia-se o Hiper-realismo Contemporâneo no Brasil (parte I)

Gio/Smoke and Shadow
“Quem foi seu mestre?” Pergunta a dr. Marilice Corona num encontro com o artista. “O Youtube!” Responde Patrick Rigon, no mesmo tom de ironia.

“Até que ponto um museu hoje pode validar a obra de um artista?” Essa é uma grande questão para a arte contemporânea. Para o público, sobretudo… Os agentes da “rede” estão acostumados a encontrar na validação acadêmica ao museu a legitimação da própria obra (uma endogenia típica do meio). Sucesso de público entre nós parece chancelar apenas cinema blockbuster: não atua sobre as motivações financeiras e estéticas do sistema da arte; no Brasil é o contrário. À parte esta questão, a produção de Patrick Rigon parece conciliar ambas as coisas: sucesso de público e de crítica especializada. Nesta semana (25) Patrick Rigon expõe pela primeira vez no MARGS, após sua individual intitulada Pele Agridoce, encerrada em junho de 2015 na Galeria Península, no Centro Histórico de Porto Alegre.

Não é apenas o talento de Rigon que alcança este poder de mediação – mas o destino mesmo da figuração contemporânea (com a licença destas grandes palavras). É parte de um fenômeno que relaciono com a “motivação pela imagem”: uma necessidade anímica nossa de contar histórias – a mesma que levou os americanos a adotarem a Pop Art nos anos 50, depois de décadas financiando o mal digerido expressionismo abstrato. E assim os sucessivos movimentos de “novas figurações” e retornos da pintura ao longo da segunda metade do século XX…

O conceito fundamental da arte clássica greco-romana era o de que arte revela; a arte faz aparecer a “verdade”. Mas, por residir no domínio da linguagem – por habitar o campo simbólico, ela só possui um único verbo com que se fazer visível: ocultar. A linguagem, de fato (se é que “mostra”, se antes não instaura um abismo entre expectador e obra) opera um complexo jogo de ocultação; sendo ela justamente o “meio”, o médium com que se faz vir ao mundo acoisa (o sentimento, o conceito, o “conteúdo manifesto” que se quer dizer), ela antes oculta a fim de poder dar a ver.

PATRICK RIGON, 2015 |
PATRICK RIGON, 2015 | “O véu” (óleo sobre madeira)

A figuração não é necessariamente uma opção; a categoria “hiper-realista” sim, embora o “discurso” de Rigon talvez não fosse articulável noutra estética… Alcança o kunstwollen justamente por evitar o equívoco segregacionista da busca pelo “belo”: Rigon cria um caminho possível – em sentido nietzschiano, onde as “regras” do fazer artístico, ao contrário de suprimir a liberdade do artista (que só tem a segui-las) e do público (que só tem a contemplar), possibilitam o fenômeno da estesia ao mesmo tempo em que dialoga com o mainstream dos debates contemporâneos, de dentro e fora da Academia.

A arte, não sabemos o que seja: é um termo em disputa. Mas o que a arte não é se torna claro: não pode mais ser o “assunto” – porque esse é a coisa impresentificável; tampouco a “forma” – que é apenas o meio da articulação simbólica. É qualquer coisa que emerge a partir da própria “aparência”. A arte visual não se utiliza do verbo; não pode prescindir da imagem, pois nesta é que encontra sua própria concreção. Isso pareceria ingênuo se não vivêssemos sob uma esmagadora tutela acadêmica orientada ao conceitualismo neste continente a se descobrir chamado Brasil.

A “VERDADE LIMPA”

Não é a academia, mas o Youtube quem realiza hoje a “cadeia de revezamento” da tradição. São, sim, ainda “jovens” mestres que desenvolvem silenciosamente um laborioso trabalho de oficina em escolas-atelieres e estúdios privados (lastro do velho sistema das guildas), hoje especialmente na Europa, Rússia e EUA, que garante a disseminação e a excelência da arte pictórica – mas utilizam a internet como veículo alternativo de divulgação e procedimento metodológico.

Jardim de inverno (detalhe) | 2014
Jardim de inverno (detalhe) | 2014

“Uma imagem sempre bloqueia a verdade” (J. Lacan)

Antes de uma análise da produção de Patrick, propomos que as sete pinturas constituintes da exposição Pele Agridoce sejam compreendidas em: dois crânios humanos, três retratos e dois autorretratos. Deixemos os crânios à parte e nos fixemos aos demais, que compõem organicamente uma mesma “fala”. A exposição não deve ser lida como crítica sociológica, por mais que se possa inferir; a chave para leitura nos parece inevitavelmente a psicanalítica (mais um ponto à sofisticação da abordagem de Patrick Rigon). Ainda que se preste a inúmeras induções, identificaremos aqui apenas dois “conceitos” importantes que se interceptam na obra: a máscara (revelada através da evidência do detalhe) e o autorretrato travestido, certa “auto-feminização”.

PATRICK RIGON,
PATRICK RIGON, “Vanitas” | 2013 (óleo sobre madeira)

Haverá maior sexualização, maior exposição “obscena” do que a conversão do rosto feminino em fetiche em nossa cultura? Nosso imaginário é fundado na analogia, na similitude: na ordem da aparência. Já o campo simbólico é fundado na diferença, na dessemelhança. Na substituição e no disfarce, Patrick Rigon reelabora as coordenadas de reconhecimento, articulando visualmente um discurso complexo e inteligente. Onde o feminino se “apresenta”, se representa como oculto; e onde o próprio artista se coloca, é a simbologia feminina que “dá conteúdo” aos referentes da mímesis. Assim lemos a mulher (cujo significado “não existe”, segundo Lacan) através da ocultação – que é a própria forma de expressão da sexualidade feminina, enquanto vemos o artista (masculino) através do véu linguístico de signos de feminilidade.

HIPER-REALISMO: APRESENTAÇÃO x REPRESENTAÇÃO

O que dá possibilidade a tudo isso é a precisão fotográfica das imagens que, digamos, “desembaraça” a representação da metalinguística ao passo que “cria uma realidade”, uma realidade (no entanto simbólica) que está “do mesmo lado” do observador – como se fossem, não pinturas, mas entidades autônomas.

PATRICK RIGON,
PATRICK RIGON, “O teste” | 2013 (óleo sobre madeira) detalhe

Em seu discurso eminentemente visual, Patrick Rigon está recolocando visualmente o problema típico da psicanálise lacaniana estruturalista: a leitura dos conceitos como significantes, atribuindo-lhes sentidos variáveis dentro do campo linguístico (resguardando-se do equívoco de lê-los como entidades de sentido estável, ou seja, independente das oscilações e imprecisões do objeto). Por isso frisamos: talvez não haja mesmo outra articulação possível que a categoria tradicional da pintura empregada com a técnica hiper-realista. Nem é necessário especular o porquê fotografias seriam impróprias para dizê-lo…

Ainda que residual, é de observar a presença dos animais, especialmente os insetos nas pinturas, sobre os rostos dos retratados. Eles tecem um sentido de organicidade por sobre a limpidez sintética da pele dos modelos e do próprio ascetismo do estilo, evocando uma fusão entre organismo e máquina, visceralidade e técnica. O inseto é símbolo da desestruturação da psique – os bugs do sistema: indícios de uma ruptura do conceito mesmo de “humano”, da estrutura familiar, sexual, social: simbólica. Atreladas às conquistas tecnológicas estão a globalização cultural, o individualismo, a pulsão consumista oriunda da obsolescência programada, algo que fende um sistema novíssimo e ao mesmo tempo em permanente decomposição – estado que se insinua na elaboração visual de Pele Agridoce.

A escolha da técnica é sim uma questão política. O diálogo que Rigon aqui estabelece com o hiper-realismo é consciente: o desenho é a única “Forma” capaz de constituir discurso. O realismo sempre foi a linguagem adotada pelo Estado porque é a linguagem do poder; as desconstruções operadas ao longo da história recente da Arte nada mais foram do que tentativas de desestabilização desse poder. O realismo como forma máxima da tecnocracia outrora desautorizou a individualidade, massificando o suporte sócio-histórico. Por isso faz-se imprescindível a re-apropriação do realismo, e é extremamente oportuna a opção pelo retrato hiper-realista hoje: um retrato, porém que dê voz novamente à subjetividade do artista – esta cambiante, não mais balizada em regimes sociais e sexuais restritos; uma individualidade que venha novamente à tona, que fale, cristalina como água, na superfície da pele…

[Este é apenas uma repostagem do artigo originalmente publicado no site filosofiadodesign.com em 29 de Junho | 2015]


Imagens do post | PATRICK RIGON
Capa: “Gio / Smoke and Shadow” 
Fotos gentilmente cedidas pelo artista. 

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Publicado por Gustavot Diaz

Artista visual e escritor, co-fundador do espaço artístico MÍMESIS | Conexões Artísticas em Curitiba, e ministrante do curso Processos Poéticos. Vive atualmente em Porto Alegre (RS).

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