O fazer da arte

A produção artística sempre foi considerada um mistério. Historicamente tomada como algo inefável por conta de seus desenvolvimentos subjetivos e invisíveis, a arte é envolta numa dimensão inapreensível, como se fosse reservada a poucos. A começar pela suposição de que o artista possui um dom – uma “dádiva” divina… Artistas e interessados no fenômenos estético, contudo, não podem ser vítimas dessa mistificação: é preciso estarem cientes dos eventos envolvidos na poiesis (ou criação artística).

Ainda que intimamente vinculado à transcendência mística, o ato criador se realiza num regime material: seu sentido depende absolutamente da expressão, e esta é plástica, física. Como em geral ninguém vê o artista produzindo, apenas a obra pronta pendurada na exposição, ou a canção sendo reproduzida no tocador, produções artísticas parecem fruto de uma operação miraculosa (assim como tudo aquilo cuja origem desconhecemos). A manutenção desse mistério cria uma ressonância romântica em torno do fazer da arte, a propósito, é duplamente útil ao Sistema das Artes: inibe diletantes a se arriscarem nos meandros do fenômeno estético, mantendo o saber entre iniciados, e sobrevaloriza o mercado.

A estratégia para não cair nessa armadilha é encarar com o máximo de objetividade o que está em jogo no gesto criativo, dimensionando a arte ao território que lhe é devido. Ou seja, considerar que a arte, embora subjetiva, é composta de atos, procedimentos, ações materiais, tudo imbricado na dinâmica de uma linguagem.

É claro que a apreciação artística, sendo parte do universo do espírito, é da ordem do imponderável; porém seu reino é também deste mundo. Me refiro aqui à dinâmica processual do fazer artístico que compõe o que eu chamaria de “equação da criação”. O principal a se reter por hora é o fato de a percepção não ser um pressuposto, tampouco um dado espontâneo. Eis aí o verdadeiro enigma: a percepção humana e sua relação com as formas. O que é difícil de entender é que, uma vez que as formas produzem experiências, experiências produzem a possibilidade de se perceber formas.

Explico: o fator objetivo que mobiliza a percepção são afetos (não conceitos abstratos da lógica); esses se constituem de coordenadas formais que intervêm nos sentidos – incidindo fisicamente sobre a permeabilidade dos órgãos sensoriais do corpo, os estímulos criam afecções. Por essa razão, a “estética” recebe tal nome – do Grego aisthánesthai significa “perceber, tomar conhecimento” (por sua vez “perceber” vem do latim percipere, “pegar, agarrar”).

EUDALD DE JUANA, The awakening of conciousness | resina, 2016

Assim é que a arte erotiza, mobiliza sensorialmente. E a única coisa que mobiliza sentidos é a forma. Melhor dizendo, as formas perfazem a própria percepção, que de outro modo não teria condições de existência. Por exemplo: o olho vê imagens ou são as imagens que constituíram a sensibilidade do aparelho ocular? O olho veria alguma coisa se nunca houvesse imagens diante dele? Seríamos capazes de ouvir se nunca houvéssemos sido expostos à música? Como a sensibilidade é sempre uma conjunção entre estímulo e sensor (nenhum desses polos existe sem o outro) é relevante pensar se foram as ondas sonoras que criaram nosso campo harmônico, ou seja, um regime dentro do qual os sons se fizeram reconhecíveis. Ou ainda, se os aromas compuseram um repertório que originou o olfato, ou foi uma regulação anterior que catalogou os aromas efetivamente sentidos. No brilhante poema A suposta existência, Carlos Drummond de Andrade indaga acerca da existência das coisas para além dos sentidos:

Como é o lugar
quando ninguém passa por ele?
Existem as coisas
sem ser vistas?

(…)

Que fazem, que são
as coisas não testadas como coisas,
minerais não descobertos — e algum dia
o serão?

(…)
Existe, existe o mundo
apenas pelo olhar
que o cria e lhe confere
espacialidade?

Concretitude das coisas: falácia
de olho enganador, ouvido falso,
mão que brinca de pegar o não
e pegando-o concede-lhe
a ilusão de forma
e, ilusão maior, a de sentido?

(…)

Carlos Drummond de Andrade, A Paixão medida

Quando se dá sentido a um afeto, o que resulta disso é experiência; não experiência das coisas, mas experiências sensoriais que mediam nossa relação com o mundo. Vale lembrar que todos os objetos do Universo são invisíveis para nós: captamos somente a luz que incide sobre eles, os quais permanecem assim para sempre ignorados em sua realidade. O telescópio James Webb não nos possibilitou ver os confins do Universo conhecido, apenas nos entregou a luz a partir da qual deduzimos uma existência cósmica. Quando digo que a forma ativa os sentidos oferecendo estímulos, quero dizer que ela produz dialeticamente a visão: esta não se pode se dar no vazio sem imagens, tampouco imagens podem existir sem a sensibilidade visual. Assim também os sons transmitidos pelos instrumentos musicais fundam a audição, e os aromas transportados pelos perfumes configuram a dimensão do olfato (sem contar que o sistema sensório é hoje dividido em oito categorias, não mais as cinco balizadas desde Aristóteles). As formas são esses suportes materiais que, por sua natureza física, atuam sobre a sensibilidade, incidindo sobre a percepção.

O mundo é, para nós, fenomênico – quer dizer, aparece não como mundo, mas enquanto fenômeno. Do Latim phaenomenon (“tudo aquilo que é percebido pelos sentidos”), o termo é oriundo do Grego phainomenon = “o que é visto, o que surge aos olhos”, de phainesthai, “aparecer”, relacionado com phos = “luz”. Quer dizer, o fenômenos é a aparição, a realização material das coisas de modo que possam atuar sobre os sentidos. Disso resulta o fato assombroso de que nos relacionamos com imagens do mundo (não diretamente com o mundo). Conforme adiantei aqui e aqui, o mundo é obstruído a nós pela própria configuração dos sentidos: ao mesmo tempo em que nos permitem ver a luz que incide sobre as coisas, os sons que reverberam, os aromas que expressam, as faculdades sensoriais paradoxalmente inviabilizam nosso contato direto com elas, uma vez que o que vemos não são coisas – mas luzes, sons, cheiros, etc. Efetivamente, a realidade não nos é dada, nunca.

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Capa: EUDALD DE JUANA | modelagem em argila


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A produção artística sempre foi considerada um mistério. Historicamente tomada como algo inefável por conta de seus desenvolvimentos subjetivos e invisíveis, a arte é envolta numa dimensão inapreensível, como se fosse reservada a poucos.

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