Algumas considerações sobre a produção poética, por ocasião do lançamento do meu livro de estreia canções para desarmar bombas, pela Editora MONDRU.

de que vale mudar em verso
o gesto vivido?
se, no início, o verbo era o ser
escrever é sacar a carne
da metáfora primordial
canções para desarmar bombas (2023) p. 141
Este trecho do poema [excertos de um tratado de escrita por escrever], enuncia a pergunta fundante da poesia: para que escrever? O que se ganha ao transformar em palavras o vivido? A experiência é nossa mediação mais ampla com o mundo. Tendo em vista que não vivenciamos o mundo, apenas o experienciamos conforme determinadas coordenadas, quando essas se transformam, transformam a experiência. Aí se esconde talvez a função mais eminente da arte: emular coordenadas para o alargamento experiencial (portanto, existencial). Escrever não é melhor do que o viver em si, mas a palavra pode dar sentido às vivências e prospectar outras.
Assim continua o poema:
palavras para não pisar na terra
sem rito e liturgia
para sentir melhor o torrão
esfarelar-se nas mãos
arsenal de pluma contra o contato
concreto, exato do real
cerrar o que é vivo na concha melancólica do verbo
dar às mãos inexistentes da palavra
a experiência que apenas o corpo conhece
na palma da mão fechada?

Uma contundente passagem das cartas de Paulo de Tarso em Coríntios diz “6Ele nos capacitou para sermos ministros de uma nova aliança, não da letra, mas do Espírito; pois a letra mata, mas o Espírito vivifica” (II Coríntios 3:6). A letra aqui se referia à Torá (ou lei Mosaica), que regia os costumes no antigo testamento, a qual podemos interpretar em paralelo à linguagem instrumental de hoje ou qualquer outro tempo, sempre que palavras percam sua dinâmica de metáfora e se tornem funcionais: o texto de um manual de instruções, por exemplo.
Acontece que a instrumentalização da linguagem hoje excede os manuais, está em todos os lugares, desde a conversa de elevador até os discursos acadêmicos, científicos e políticos. Para cumprir aquela função, a arte precisa reabilitar a letra a fim de evocar dela o espírito; como cito ao final da mesma poesia:
cerrar o que é vivo na concha melancólica do verbo
dar às mãos inexistentes da palavra
a experiência que apenas o corpo conhece
na palma da mão fechada?
(…)
(re)verter a letra morta do mundo
em língua viva que caiba na boca
Idem, p. 142
Testemunho pessoal e balanço de um tempo, este livro se dedica a desarmar o que destitui a palavra de sua dimensão poética, convidando o leitor à elaboração conjunta: é preciso reivindicarmos o direito de elaborar as ideias no debate. Não é isolado que o sujeito alcança melhor a interpretação das conjunturas; tampouco reduzindo dicotomicamente os termos de tudo a apenas dois lados opostos como no caso das polarizações. A melhor formulação dos conteúdos da vida surge no diálogo – e a leitura é o diálogo por excelência (ou, pelo menos um ótimo início de conversa).
Os poemas de canções para desarmar bombas também sondam os emaranhados políticos que aparelham a linguagem e fazem constelar a violência quando introjetados no circuito dos afetos sociais. No livro, a micropolítica do cotidiano (desde a lista do mercado, a falta de dinheiro, o isolamento urbano e a solidão nas redes) se conjuga à temas da geopolítica (guerras em curso, banalização da violência, o poder das big pharma e big tech, a vigilância policial e o racismo)…


Além do racismo e preconceito de classe – na primeira parte do livro, onde estão os capítulos mais políticos- concentro a crítica à instrumentalização em suas diversas manifestações, abordando também outras temáticas, vale mencionar: o consumo de carne, a expropriação de terras, o desmatamento, o financismo neoliberal predatório, as dismorfias, a repressão de movimentos políticos, a algoritmização da vida, feminicídio, machismo, violência doméstica, ditadura, a linguagem despotencializante da autoajuda e a alienação do mundo coach. Deste modo, botando em revista banalidades e clichês dispersos no cotidiano que alienam a vida da densidade de experiências reais, o livro tem elementos por vezes estranhos à tessitura poética (acredito tê-los sabido conjugar organicamente no texto por meio de uma forma fixa rigorosa).
Mas, o principal desafio era: como dizer de tudo isso de modo a criar experiências que revitalizem sentidos? A estratégia que usei foi evitar a naturalização da denúncia e o panfletarismo, adotando variadas vozes e diferentes registros; sobretudo, nunca descurando do lirismo, imprescindível à poesia que se quer ao mesmo tempo estética e política. Na sequência damos mostra desse lirismo em alguns trechos, dispostos especialmente nos capítulos finais (parabolé, imargem e epilírico):
na semente, o olhar calcula a esperança da flor
prevê a chuva no ventre da nuvem que passa
projeta vínculos entre dois ou mais
a pele sente melhor o cálculo preciso do abraço
as mãos sopesam as horas:
horas que criam o milagre do corpo
e tecem nele seu frágil fractal
(como a seiva conhece a flor que nutre
e a pétala o vento que a balança)
“balanço”, p. 117
ninguém lê duas vezes o mesmo poema
o verso se reescreve na fala:
assim, o poeta altera a flor
no ato de observá-la
“quântica”, p. 122
retornando à África, embarquei no aeroporto de Nairobi
num voo único, onde refiz pela Nova Rota da Seda
o caminho que Marco Polo fez em juncos e dromedários
(…)
seguindo rota inversa a de La Pérouse, visitei os tlingits no Alaska
e cortei as latitudes até atracar no México, onde tomei um café no Starbucks
em frente a um magnífico mural de Alfaro Siqueiros
“volta ao mundo em quarentena”, p. 124
Enfim, se a “escrita é o ofício da solidão”, conforme menciono na introdução, o que o escritor faz são tentativas de elaborar o outro na linguagem: compartilhar com sua percepção novas coordenadas para uma experiência mais profunda e ampla da existência. Meu desejo é que o Canto nessas canções para desarmar bombas e nos unir, ao menos por um instante, na contemplação concomitante do mundo. Procurei alcançar o que diz o psicanalista e também escritor Alexandre Marzullo na Apresentação do livro (cuja generosidade agradeço):
“Pulsa pelas páginas seu entusiasmo precioso a serviço da forma, calor da palavra: sua voz. Sua primeira operação é na realidade uma operação de generosidade: situar o leitor no epicentro de seu alvoroço cotidiano, para logo depois suspendê-lo com as virtudes do gesto poético.”
Ouça abaixo o episódio do Podcast DESVER com nossos comentários a respeito do livro, o qual pode ser adquirido com valor promocional ainda na pré-venda pela loja da MONDRU aqui!
Imagem da capa: Gustavot Diaz
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