Todo artista intui e de algum modo sente na pele que sua atividade criativa não é devidamente aceita; e quando aceita, não é bem compreendida. Nesse caso é ainda pior: a censura é intolerável, mas não há interdição maior do que articular uma língua que ninguém entende, numa linguagem que nada significa aos outros. Realmente, o dilema maior do artista parece ser aceitar a sua própria verdade.

Este texto é a Parte II do primeiro encontro do Processos Poéticos (5ª edição); consulte aqui a Parte I (o curso aceitará inscrições até 21 de abril).
Senti esta inadequação a vida inteira, até que algo mudou minha percepção: concluí que havia introjetado a rejeição que eu atribuía ao mundo. Sem querer, eu mesmo passara a policiar e secundarizar minha versão criativa. Se aceitasse integralmente a condição de criador – tal aceitação redundaria num trabalho convincente que seria, então compreendido, e, portanto aceito. Isso acontece o tempo todo: é o caso dos artistas que deram certo… O que acontece quando “aceitamos” nossa verdade? Simples: ela é capaz de convencer os demais.
Todos que participam das turmas do Processos Poéticos estão nessa condição; estamos aqui porque transigimos com exigências sociais, acatamos regras, imposições alheias… muitas vezes, inclusive, nos convencemos da farsa grotesca que diz “o mundo é assim mesmo, não há outro jeito”, “a vida é assim”, “assim é que é”, etc. De forma mais drástica: privamos com o inimigo, compactuamos com nossa própria escravidão às demandas alheias. E muitas vezes sacrificamos alegremente o nosso desejo. Mas isso não tem como durar: a procura da interlocução gerada no curso é também o sinal de que o desejo foi mais forte. O desejo, mesmo inconsciente, venceu.
A cognição humana não “entende” o mundo – ela produz ficções, “articulações simbólico-imaginárias” (vermos isso melhor no encontro sobre Psicanálise). Quer dizer que o ser humano cria mesmo sem saber, desde a relação mais espontânea com o meio social, que se chama “ideologia” [esse Ideo vem de ídea (do Grego “ideia”), que provém de idein = “ver”]. Etimologicamente, a ideologia funciona nos dois sentidos: “ver com a razão ou racionalizar a visão” – ambos têm a ver com “imagem” e com a capacidade imanente de mediar nossa relação com o mundo através delas:
Nossa relação com o mundo é, afinal, uma relação com imagens; e toda imagem é uma ficção (ela não é a coisa, mas uma representação da coisa). Em síntese: todo pensamento é potencialmente criativo.
Contudo, uma coisa é pensamento criativo, outra é ação criadora. Esta última, também conhecida como poética, é mais difícil de acontecer, pois requer técnica, disposição e as condições objetivas de um espaço de reconhecimento social. Não é que a gente tenha mania de perseguição ou vitimização paranoica: a sociedade realmente não nos aceita enquanto artistas. Na mesma proporção, ela não aceita a criatividade, nem a poesia, nem a invenção. E ela precisa agir assim: o corpo social precisa reagir ao novo.
De nossa parte, o melhor a fazer é aceitar que esse é um mecanismo de autodefesa do corpo social. Não tem a ver conosco; não é pessoal. E são inúmeros os instrumentos dessa exclusão, sendo o principal deles a invisibilidade que nos é imposta. Afinal, visibilidade é uma técnica política – quem aparece, tem direitos garantidos; quem não aparece, não. Desde as rádios brasileiras, por exemplo – que não tocam música brasileira – até o conhecido constrangimento de se sentir deslocado na escolha do vestibular: tudo isso são tecnologias sociais de distinção política.

A exclusão social do artista
Na verdade, a exclusão sistemática do artista faz muito sentido: sua a função, o métier do artista é fazer a crítica da cultura; a sociedade não pode aceitar isso impunemente (“crítica” aqui no melhor sentido – avaliação sistemática, análise de fundamentos, avaliação dos pressupostos sociais, etc). É claro que a sociedade não quer críticas, ela quer se preservar; já o artista tem a função de cindir a estrutura da linguagem, ou ainda expor os limites dos modelos de expressão usados no interior da sociedade:
O artista vai sempre questionar, desde a própria “linguagem do questionamento”; sua função é lembrar que a dimensão fenomênica da experiência humana é infinitamente complexa e mutável, deixando claro que o limite de um padrão ou modelo de linguagem é precisamente o fato de ser padronizado – e por isso não serve para qualificar a existência.
Padrões são o eixo das identificações que vão paralisar o ser humano diante do desejo… Quando o desejo não encontra vazão, se expressará na forma de “erros”, “lapsos”, “chistes”, “atos falhos”, etc. Ou seja, precisamente nas incongruências da linguagem. Esse é um ponto interessante: as formas pelas quais o inconsciente se expressa são justamente aquelas que Freud enunciou como “sintomas do inconsciente”.
Angústia é o sinal de que o desejo não encontrou lugar na palavra; nesta condição, o desejo como que encontra expressão no fracionamento da linguagem: daí vêm os lapsos, atos falhos, chistes, sonhos, sintomas psicossomáticos: tudo manifestações que o inconsciente despeja na linguagem. Notem que as formas de expressão do desejo são as mesmas da expressão artística: as duas vão incidir e se exprimir exatamente na linguagem, através do esgarçamento da gramática. Aí está porque a sociedade precisa sempre rechaçar a arte, não podendo nunca reconhecer integralmente a existência e direitos do artista: a condição de existência do artista é fazer a crítica das condições de existência.

Os modelos de linguagem, a gramática dos afetos – como qualquer tipo de padrão social, são no fundo associações identificatórias que anulam a subjetividade individual. Assim é que os modelos promovem amplos acordos de conveniência. E aqui se explicita a maior função do artista: como a intervenção da arte é sempre disruptiva, ela impede que o sujeito dilua sua essência “única” no seio social; quer dizer, ela preserva aquilo que é só nosso, aquilo que a linguagem é incapaz de expressar por inteiro.
A rejeição aos artistas não é uma novidade da nossa época – ela é histórica. Na filosofia, já começa em Platão, quando o filósofo grego excluiu os artistas de sua República ideal. Platão percebe que os mythós (no grego, é como ele define a produção artística, especialmente a poesia épica) tinham enorme capacidade de se “sintonizar com a psyche humana”. Sócrates então proíbe esses produtores de myhtós (ou artistas) porque o público seria incapaz de perceber seu “caráter estético”, considerando-os perigosamente como “verdade literal”, sem poder distinguir entre mythós e realidade. Em outras palavras: temendo o impacto gerado pela arte, o filósofo opta por “banir” o artista daquela que seria a sociedade ideal. A rejeição social contra os artistas, como se vê, está no DNA das sociedades humanas.

Concluindo
Como dito no início, a rejeição que vem de fora, acabamos por introjetar, de modo a exercer sobre nós mesmos tal repressão ou rejeição. Nem é preciso “a sociedade” definir nossa atividade artística como fútil ou desinteressante, tampouco reafirmar a esdrúxula tese de que “o artista morre de fome” e demais bobagens do senso comum. Nesse horizonte, a melhor posição é: primeiro, aceitar que a arte é inútil (o que não quer dizer que não tenha função determinante no curso da cultura); depois, defender com “unhas e dentes” tal posição – em nome de uma visão estética do mundo.
A arte é de fato inútil nas sociedades de consumo. Enquanto termômetro da doença chamada “capitalismo” – ante do sistema da instrumentalização absoluta e da tecnocracia como regulação social – o artista denuncia sua mecânica perversa através do ato poético, expondo assim sua verdade mais crucial: o desejo humano foi convertido no pragmatismo de operações “modelares”, padronizadas, estereotipadas. E o estereótipo máximo com que o capitalismo converteu a nós todos é o consumo: independente do que fazemos, queremos ou desejamos, independentemente de qualquer coisa, somos todos “consumidores”.

O exemplo mais atual é a Inteligência Artificial – que se constitui de um “modelo de linguagem” (uma instrumentalização técnica da linguagem) programado para nos iludir simulando nossas próprias experiências.No capitalismo, justamente por conta desse tecnicismo, a dimensão estética foi perdida. Em tal contexto, a missão do artista não é outra senão reaver a dimensão da “estesia”; o que ele realiza intervindo esteticamente no mundo. O caminho para tal reconquista da estética, deduzimos através da famosa afirmação de L. Tostoi: “se queres mudar o mundo, começa por tua própria aldeia”: o percurso de tal intervenção começa dentro de cada artista.
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Capa: JOHANNA ALLEN, “Horizon”, 2022 | escultura (bronze, 280mmX180 mm)
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