
Segunda parte do conteúdo a ser ministrado na Oficina
“FIGURA CONTEMPORÂNEA: Técnicas tradicionais e Hiper-realismo” (Florianópolis | 23, 24 e 25 de Fevereiro | 2016)
Uma crença bastante comum é a de que o desenho seria fruto da introspecção do artista – uma suposta “imersão às profundezas de si mesmo”. Por conta de ilusões românticas assim, são necessárias novas formulações acerca do tema. Essa abstrata “imersão” de que se fala, e mesmo esse “si mesmo”, não são na realidade elementos dados; são representações. Não há um “si mesmo”, e se houvesse, seria um esforço humano por natureza – que é nossa constante defesa psíquica contra à existência. Vladmir Safatle desenvolve de forma brilhante esse último tema.
O polo oposto dessa representação é reduzir o desenho à prática: o ato de desenhar não pode se resumir à aplicação mecânica, que implica um “aparelhamento” técnico da visão. Temos dito que não existe cópia, que o desenho é sempre síntese e que, portanto envolve operações que obviamente vão além da mecanicidade reprodutiva… Mas pode haver um tipo de desenho que se limita à cópia, a um fazer não constitutivo de poiesis: um tipo de exercício de motricidade, de pura coordenação motora que transforma o desenho numa operação matemática. Em que pese sua importância como metodologia de aquisição técnica (qualquer atividade requer treino e repetição), se os procedimentos técnicos forem colocados como “fim”, e não apenas como “meio”, podem ser transformados em algo paralisante – redundando justamente em seu objetivo contrário, ou seja, em obras cuja apreciação estética é frustrada.

Há um repertório filosófico que considera o reconhecimento da beleza na própria capacidade do artista em realizar uma obra realista. Nessa corrente, a beleza não estaria na obra em si, mas fundada no “fazer” envolvido em sua realização. Esta noção é muito difundida em nossa cultura e se evidencia quando, diante de um trabalho, seja ele de qualquer natureza, alguém diz “Nossa, Fulano é um artista!”. Nossa noção de arte está impregnada da concepção do “saber fazer”. Mas isso não deve ser encarado como uma limitação: são as condições subjetivas possíveis de apreciação estética do grande público. Tampouco o artista deve se contentar: seu objetivo é justamente “tensionar” a faculdade de apreciação estética do público – o que certamente não será feito apenas com desenhos tecnicamente bem realizados.

A estesia causada pela arte não se limita ao “belo” – independente de que acepção ele tenha. É um processo bastante complexo; não teríamos elementos para desenvolver aqui. Mas relacionemos duas expressões que na língua vernácula são consideradas antitéticas: sensação x pensamento. Dada a origem latina do termo “senso” (sensos – sentido, órgão do sentido, faculdade de sentir, sensação, pensamento) vemos já na etimologia um parentesco inalienável. Essa tendência a fragmentar o sensível reverbera na arte na forma de polarização entre técnica x conceito, já mencionada no artigo anterior, associando a arte à sensação, à dimensão que toca o emocional, como se o “belo” devesse ser destituído de razão.
Por que o HP não é “arte acadêmica”, nem “clássica”

Qualquer desenho que hoje pareça realista é largamente taxado de “acadêmico”, ou clássico. São definições equivocadas, uma vez que o método acadêmico envolvia uma série de procedimentos, que de modo algum correspondem à produção realista contemporânea – seja ela qual for (dos melancólicos e mal desenhados casarios e paisagens de feira, à retratística atual). Para termos uma ideia do rigor acadêmico, no famoso método de Charles Bargue ele afirma que o desenhista deveria usar o mesmo sapato durante a execução de seu desenho. A justificativa técnica é que qualquer alteração no ponto de vista do observador incide sobre a aferição do objeto – o que é fato.
Mesmo o “purismo” acadêmico – chamado de Academicismo – surgiu com a intenção de manter a tradição técnica, o que culturalmente se faz adotando-se ritos, que acabam se tornando dogmas; no caso da arte paralisou a criação plástica. É claro que entre intenções subjetivamente honestas subjazia a de manter o poder, congelando o “discurso artístico” (que é também um discurso de poder). É interessante recorrer à História para entender porque e como o Academicismo – que surge sob os auspícios burgueses progressistas do Neoclassicismo – é apropriado pelo Estado monarquista brasileiro como estilo oficial no século XIX.

São inúmeras as características que separam a produção atual de qualquer tipo de “academicismo” (do desenho “acadêmico” ou dito “clássico”). Chamamos atenção para o Hiper-realismo Contemporâneo, que talvez seja a categoria mais dissociada, de fato, do “clássico”, mas também a mais confundida com ele. Concluímos com dois motivos que consideramos centrais dessa divisão:
- A “arte acadêmica” circunscrevia a dimensão qualitativa das temáticas, as quais deviam, sobretudo afastar-se do repertório das contingências sociais a fim de manter-se em um campo autônomo de discurso (portanto, de poder). É a atitude de G. Coubert (já mencionada) que proclama a independência do tema – implicando ao mesmo tempo na diminuição da autonomia artística e na ampliação da liberdade do artista. Ou seja: a arte realista passava a se submeter à realidade cotidiana (à noção de verossimilhança e às demandas sociais); ao passo que crescia a liberdade do artista, sendo-lhe facultada a livre escolha de temáticas. O Hiper-realismo Contemporâneo e a arte realista atual não possuem nenhuma restrição temática – abordando desde ícones da cultura pop até interpretações visuais de temas da psicanálise;
- Remetendo-nos à experiência sensível, ao apropriar-se de temas banais, a arte realista subverte a fetichização da imagem (operada pelo cinema global, fotografia comercial, etc), deslocando-a de seu contexto e frustrando a tipificação de expectativas. Na produção Hiper-realista de hoje, onde se espera consumo instantâneo de cenas cotidianas, revelam-se laboriosas construções de composição e execução da imagem, trazendo de volta o tempo de contemplação e reflexão. Isso faz com que a obra resista à banalização.
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Imagem da capa:
JASON DE GRAAF |”Vesalius skeleton” (acrílica sobre tela)
Um comentário em “FIGURA CONTEMPORÂNEA: A técnica do desenho e a ressignificação Hiper-realista (Parte II)”