
Desenho é síntese: transmutação da substância inerte dos materiais expressivos em “signos”, e consequente apropriação dos elementos sígnicos em linguagem visual. O modo como ele opera passa pela reconstituição da impressão sensível, recriando as coordenadas da experiência visória. Para desenhar é, portanto, necessário criar – não a identificação (mera similitude entre desenho e coisa desenhada), mas a estesia sentida na apreciação estética do mundo. É por essa via que o desenho realiza sua destinação mais profunda: a geração de sentido.

Desenho produz ordenação; organiza a dispersão natural do mundo em um sistema orgânico legível e inteligível. Sua finalidade é resgatar a experiência do sensível apresentando o caos de forma integrada (ou seja, visível) à apreensão do espectador. Institui uma ordem ao que ficou por ver, ao que não pode ser visto. Daí que desenho não é ver; é “tornar visível”, segundo afirmamos em outro post.
Como o Desenho constrói um real autônomo
Geminando as condições de experienciação da realidade física, o Desenho reconstitui a dinâmica do próprio olhar, fazendo com que funcione antes como um olhar autônomo capaz de criar uma dimensão perceptiva independente de seus referenciais imagéticos (modelos) do mundo exterior. A transformação do objeto sensível para a linguagem do Desenho é uma relação de síntese. Dela resulta que o desenho (do objeto) deixa de ser representação de um modelo e se torna referente a outro campo de significados. Este campo não é do real no qual o Desenho supostamente se inspira – pelo contrário, o Desenho cria posteriormente o real de que será referência (tal como a memória que elabora presentemente seus conteúdos). Em termos práticos, podemos dizer, por exemplo, que a tela O Grito (1893) de E. Munch não foi inspirada em um modelo real que posou para o artista[1] – ela desvenda um Real perturbador sentido no íntimo de nós todos: a angústia.
É fundamental considerar que o olhar não funciona como mero anteparo sólido onde a luz rebate – o olhar organiza a priori a realidade com que se defronta, este mundo de aparências que nos entra pela retina. O que vemos não são as coisas tal como “realmente” são; vemos uma “realidade” organizada pelo olhar, que traz consigo suas circunstâncias – medos, anseios e desejos que estruturam nossa realidade. Aquilo que vejo é produto de certos condicionamentos; quer dizer, minhas experiências, a fim de que eu as perceba, são elaboradas em termos cognoscíveis de linguagem. São, por assim dizer, “ficcionalizadas”.
A forma como isso é operado demanda-nos uma noção de alguns conceitos do psicanalista francês Jacques Lacan, que enunciou que a verdade possui “estrutura de ficção”, redimensionando o “verdadeiro” aos limites da linguagem. Esta consideração sugere que a própria visão ficcionaliza o real transformando nossas experiências cotidianas em metáfora (em termos de representação na linguagem) a fim de que apareçam como experiências cotidianas e sejam percebidas por nós no plano do simbólico. Para constatar isso, embora de forma ligeira, peça a alguém para relatar o que aconteceu em seu dia. É normal que ela se dê conta de algumas circunstâncias que não havia percebido quando efetivamente aconteceram, que somente ao “contabilizar” suas experiências vertendo-as para a fala, pode de fato compreendê-las e então vivenciá-las. Essa formulação em linguagem é uma construção ficcional.

A câmara fotográfica oferece uma comparação precisa para esta questão: consideremos que a máquina é apenas uma caixa preta hermeticamente fechada, sem luz, com um orifício obturado. O mundo aparente do sensível está fora dela. Quando o obturador se abre, o mundo exterior das formas escapa rapidamente para dentro da câmara escura, e ela então nos revela o que viu: um mundo organizado no espaço. A imagem revelada na foto, entretanto, não é o “mundo real”, é apenas solução plástica, transmutação da confusão incompreensível que é o mundo para linguagem fotográfica. A fotografia impressa constitui um artifício tão manipulado quanto um desenho. Os elementos na foto parecem “reais”, porém não há nada de real, nem verosímil neles. O que há é uma adulteração total dos elementos e das coisas: antes volumes cambiantes em perspectiva, agora impressões planificadas e estáticas num recorte de acetato. Assim também é o olhar: altera a substância e a forma “reais” com a finalidade de torná-las visíveis, verosímeis. O real por si só não se revela nunca; sua natureza é essencialmente traumática, impossível de se fazer visível sem a mediação do olhar.
O “Real” de que nos fala Lacan não é precisamente isso. O Real é a impossibilidade imanente na própria ordem simbólica (“o Real é um impasse de formalização”). Portanto, não há uma realidade para além da prática simbólica, ou uma contingência não capturada pela linguagem – algo, digamos, que a câmera não conseguiu captar, algo que ficou “fora da imagem”. O Real, na metáfora acima, seria equivalente à própria câmara escura, o lugar invisível onde as aparências se processam, o interior da máquina que, ao condicionar toda a criação da imagem, nunca se mostra, nunca pode ser captado. É antes uma impossibilidade inscrita na própria condição de simbolização, e sem a qual não há imagem.
Os registros do mundo aparente são emitidos da mesma forma como o dispositivo cego da câmara, e o Desenho é um dos dispositivos de fazer ver. Ele não tem a ver com o real, senão no momento em que, já realizado, permite ver-se ao olhar do observador. Quando concluído, o desenho passa a emitir uma mensagem, e somente então informa-nos do real.

[1] Consta que, após caminhar numa tarde quente sob as cores quentes do céu de Oslo, o artista teve uma sensação de cansaço, de estar doente, de onde lhe teria ocorrido a ideia de um “grito da natureza” (título original da obra). Consta também que teria chegado à forma final da tela após significativas mudanças nos elementos da composição. De tudo isso resulta a conclusão, ainda que grosseira, de que não houve inspiração direta em nenhum real, tampouco em objetos aparentes da fisicalidade, mas sim a criação de referentes de um real ulterior.
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Sugestão de leitura:
CHRISTIAN DUNKER | O Mal-Estar na Arte Brasileira
MARCOS BECCARI | O “realismo-abstrato” da arte contemporânea
Capa | PAUL CADDEN “Transparence” 2011 | grafite sobre papel
Conteúdo do primeiro encontro da Oficina
“Desenhos do Corpo” (Porto Alegre | 12, 13 e 14 de Maio | 2016)