O DESENHO E O REAL (esboços)

5–7 minutos

·

·

alejandro-garcia-restrepo-3-652x575
ALEJANDRO GARCIA RESTREPO | grafite sobre papel

Desenho é síntese: transmutação da substância inerte dos materiais expressivos em “signos”, e consequente apropriação dos elementos sígnicos em linguagem visual. O modo como ele opera passa pela reconstituição da impressão sensível, recriando as coordenadas da experiência visória. Para desenhar é, portanto, necessário criar – não a identificação (mera similitude entre desenho e coisa desenhada), mas a estesia sentida na apreciação estética do mundo. É por essa via que o desenho realiza sua destinação mais profunda: a geração de sentido.

EDVARD MUNCH, “O grito” (1893)

Desenho produz ordenação; organiza a dispersão natural do mundo em um sistema orgânico legível e inteligível. Sua finalidade é resgatar a experiência do sensível apresentando o caos de forma integrada (ou seja, visível) à apreensão do espectador. Institui uma ordem ao que ficou por ver, ao que não pode ser visto. Daí que desenho não é ver; é “tornar visível”, segundo afirmamos em outro post.

Como o Desenho constrói um real autônomo

Geminando as condições de experienciação da realidade física, o Desenho reconstitui a dinâmica do próprio olhar, fazendo com que funcione antes como um olhar autônomo capaz de criar uma dimensão perceptiva independente de seus referenciais imagéticos (modelos) do mundo exterior. A transformação do objeto sensível para a linguagem do Desenho é uma relação de síntese. Dela resulta que o desenho (do objeto) deixa de ser representação de um modelo e se torna referente a outro campo de significados. Este campo não é do real no qual o Desenho supostamente se inspira – pelo contrário, o Desenho cria posteriormente o real de que será referência (tal como a memória que elabora presentemente seus conteúdos). Em termos práticos, podemos dizer, por exemplo, que a tela O Grito (1893) de E. Munch não foi inspirada em um modelo real que posou para o artista[1] – ela desvenda um Real perturbador sentido no íntimo de nós todos: a angústia.

É fundamental considerar que o olhar não funciona como mero anteparo sólido onde a luz rebate – o olhar organiza a priori a realidade com que se defronta, este mundo de aparências que nos entra pela retina. O que vemos não são as coisas tal como “realmente” são; vemos uma “realidade” organizada pelo olhar, que traz consigo suas circunstâncias – medos, anseios e desejos que estruturam nossa realidade. Aquilo que vejo é produto de certos condicionamentos; quer dizer, minhas experiências, a fim de que eu as perceba, são elaboradas em termos cognoscíveis de linguagem. São, por assim dizer, “ficcionalizadas”.

A forma como isso é operado demanda-nos uma noção de alguns conceitos do psicanalista francês Jacques Lacan, que enunciou que a verdade possui “estrutura de ficção”, redimensionando o “verdadeiro” aos limites da linguagem. Esta consideração sugere que a própria visão ficcionaliza o real transformando nossas experiências cotidianas em metáfora (em termos de representação na linguagem) a fim de que apareçam como experiências cotidianas e sejam percebidas por nós no plano do simbólico. Para constatar isso, embora de forma ligeira, peça a alguém para relatar o que aconteceu em seu dia. É normal que ela se dê conta de algumas circunstâncias que não havia percebido quando efetivamente aconteceram, que somente ao “contabilizar” suas experiências vertendo-as para a fala, pode de fato compreendê-las e então vivenciá-las. Essa formulação em linguagem é uma construção ficcional.

ALEJANDRO RESTREPO “Los eslabones perdidos” | grfite sobre papel

A câmara fotográfica oferece uma comparação precisa para esta questão: consideremos que a máquina é apenas uma caixa preta hermeticamente fechada, sem luz, com um orifício obturado. O mundo aparente do sensível está fora dela. Quando o obturador se abre, o mundo exterior das formas escapa rapidamente para dentro da câmara escura, e ela então nos revela o que viu: um mundo organizado no espaço. A imagem revelada na foto, entretanto, não é o “mundo real”, é apenas solução plástica, transmutação da confusão incompreensível que é o mundo para linguagem fotográfica. A fotografia impressa constitui um artifício tão manipulado quanto um desenho. Os elementos na foto parecem “reais”, porém não há nada de real, nem verosímil neles. O que há é uma adulteração total dos elementos e das coisas: antes volumes cambiantes em perspectiva, agora impressões planificadas e estáticas num recorte de acetato. Assim também é o olhar: altera a substância e a forma “reais” com a finalidade de torná-las visíveis, verosímeis. O real por si só não se revela nunca; sua natureza é essencialmente traumática, impossível de se fazer visível sem a mediação do olhar.

O “Real” de que nos fala Lacan não é precisamente isso. O Real é a impossibilidade imanente na própria ordem simbólica (“o Real é um impasse de formalização”). Portanto, não há uma realidade para além da prática simbólica, ou uma contingência não capturada pela linguagem – algo, digamos, que a câmera não conseguiu captar, algo que ficou “fora da imagem”. O Real, na metáfora acima, seria equivalente à própria câmara escura, o lugar invisível onde as aparências se processam, o interior da máquina que, ao condicionar toda a criação da imagem, nunca se mostra, nunca pode ser captado. É antes uma impossibilidade inscrita na própria condição de simbolização, e sem a qual não há imagem.

Os registros do mundo aparente são emitidos da mesma forma como o dispositivo cego da câmara, e o Desenho é um dos dispositivos de fazer ver. Ele não tem a ver com o real, senão no momento em que, já realizado, permite ver-se ao olhar do observador. Quando concluído, o desenho passa a emitir uma mensagem, e somente então informa-nos do real.

JASON SHAWN ALEXANDER | “No Good At Exits” (2014) | óleo e mixed media sobre duas telas

[1] Consta que, após caminhar numa tarde quente sob as cores quentes do céu de Oslo, o artista teve uma sensação de cansaço, de estar doente, de onde lhe teria ocorrido a ideia de um “grito da natureza” (título original da obra). Consta também que teria chegado à forma final da tela após significativas mudanças nos elementos da composição. De tudo isso resulta a conclusão, ainda que grosseira, de que não houve inspiração direta em nenhum real, tampouco em objetos aparentes da fisicalidade, mas sim a criação de referentes de um real ulterior.

___

Sugestão de leitura:

CHRISTIAN DUNKER | O Mal-Estar na Arte Brasileira
MARCOS BECCARI | O “realismo-abstrato” da arte contemporânea

CapaPAUL CADDEN “Transparence” 2011 | grafite sobre papel

Conteúdo do primeiro encontro da Oficina
“Desenhos do Corpo” (Porto Alegre | 12, 13 e 14 de Maio | 2016)

Desenho é síntese: transmutação da substância inerte dos materiais expressivos em “signos”, e consequente apropriação dos elementos sígnicos em linguagem visual. O modo como ele opera passa pela reconstituição da impressão sensível, recriando as coordenadas da experiência visória. Para desenhar é, portanto, necessário criar – não a identificação (mera similitude entre desenho e coisa desenhada),…

Deixe um comentário

Feature is an online magazine made by culture lovers. We offer weekly reflections, reviews, and news on art, literature, and music.

Please subscribe to our newsletter to let us know whenever we publish new content. We send no spam, and you can unsubscribe at any time.

Voltar

Sua mensagem foi enviada

Designed with WordPress.