DESENHO ANATÔMICO: O CORPO DESVENDADO

GERAR DE LAIRESSE | Ilustração para o Tratado de Bodloo “Medicinae Doctoris & Chirurgi, Anatomia Hvmani Corporis” (1685)
GERAR DE LAIRESSE | Ilustração para o Tratado de Bodloo “Medicinae Doctoris & Chirurgi, Anatomia Hvmani Corporis” (1685)

Sem saber não é possível enxergar. Até que eu indique ao aprendiz a “luz refletida” dentro da “sombra própria” de um objeto, ele não a percebe; até que conheça a existência da clavícula no retrato de perfil, o desenhista não a vê. É necessário saber, conhecer as formas para que a visão se habilite… Depois disso, é necessário esquecer o que se sabe, para enfim desenhar.

O conhecimento, quer dizer, a enunciação da coisa é o que capacita o olhar na apreensão da forma. Isso está expresso na famosa narrativa de que os primitivos índios caribenhos não conseguiam enxergar os navios de Cristóvão Colombo quando este chegou à América Central com sua frota; foi preciso muitos dias até que o pajé da tribo, observando atentamente o mar, percebesse um quebrar diferente das ondas e só então divisasse as enormes caravelas diante dele na praia. O pajé, neste momento, as indica aos demais índios, e só então eles as veem. No antigo livro da cosmogonia hebraica, o Gênesis, isso também está presente: “Disse Deus: Haja luz; e houve luz … E disse Deus: Haja firmamento no meio das águas… E assim se fez”. O enunciado da coisa vem “antes da coisa” e de sua percepção formal.

Desenhos do Corpo 6

Há diversas metodologias para o desenho da figura humana; em tese, qualquer artista que sistematize os procedimentos técnicos de que se vale com acerto em sua produção criará seu próprio método. Aqui lincamos um texto bastante informativo a respeito disso, elaborado pelo amigo Luiz Celestino. Mas, independente do procedimento adotado, sugerimos considerar sempre com atenção a abordagem anatômica. Ela qualifica o desenho ao garantir aquele “saber” mencionado no parágrafo anterior: conhecendo a estrutura interna do corpo, o desenhista será capaz de ver as formas no modelo, até que o perca de vista – quando então desenhará o que sabe. Conhecer a Anatomia permite ao desenhador enxergar os volumes do corpo de seu modelo qualificando a experiência da observação e criando condições para o desenho da figura mesmo na ausência dos modelos. Conhecendo a arquitetura do corpo, podemos reconstruí-lo como o desejamos, sem necessidade de modelos.

É claro que mesmo a abordagem anatômica não dispensa a “blocagem”, a medição de proporcionalidade, a aferição, etc. No entanto, para além dos métodos, existem duas “atitudes” diante da figura, ambas fáceis de reconhecer, cuja consciência pelo desenhista é de extrema importância: a “geométrica” e a “intuitiva”. A disposição subjetiva na abordagem do desenho expressará qual a melhor atitude para cada desenhador; quer dizer, ela aparece espontaneamente no trabalho, indicando a preferência natural de cada um. Particularmente, sempre optei pela segunda, mesmo antes de ter consciência dessa divisão.

eiren by darren kingsley 18 x 24 graphite on paper
DARREN KINGSLEY | grafite sobre papel

A atitude geométrica é marcada por um raciocínio matemático que rege todas as operações. Aqui um princípio de proporcionalidade irá coordenar o desenho, do início ao fim; toda relação será aferida (aferição = medição do espaço para determinação dos limites da figura no papel) e toda dimensão calculada antes de o lápis tocar no papel. Para este caso é imprescindível o uso de instrumentos – especialmente a vareta de medição (ou o “fio de prumo”); e ainda eventuais procedimentos de mise au carreau (do francês “colocar no quadro” = é um procedimento onde se quadricula o motivo, tema ou foto de referência, e a seguir faz-se o mesmo quadriculado no suporte onde se quer desenhar, aumentando proporcionalmente para desenhos em escala; utilizado desde o início do Renascimento, ainda hoje possui grande eficácia em ampliações).

Zhaoming Wu
ZHAOMING WU | lápis carvão sobre papel

Na atitude intuitiva, o artista desenha o que sabe, além do que vê. É quando o olhar é guiado por “tempos visuais” – ora conduzido por pareidolias (quando identificamos objetos conhecidos em vagos estímulos visuais; por exemplo, carneirinhos nas nuvens, ou rostos na face de um rochedo), ora por procedimentos de adição e subtração; ora ainda por alinhamentos e proporcionalidades medidas também com a vareta de medição. É uma forma mista com a “geométrica”, que funciona como um remodelar permanente da forma, que vai sendo conquistada por meio de empastes e desbastes, como na modelagem em cerâmica. Nessa abordagem, o desenhista sabe o que vê, e é aqui que a Anatomia se torna mais fundamental. Uma vez que não há uma transposição de luzes e sombras do modelo para o papel, e sim a recriação no papel dos volumes do modelo, estes devem ser conhecidos anteriormente pelo desenhista; assim ele saberá do que se trata quando os enxergar no corpo do seu modelo.

Damos aqui dois exemplos notáveis da aplicação de cada um, considerando que essas atitudes descritas são conceitos bastante amplos com os quais categorizamos as abordagens apenas para fins de análise. Podem auxiliar professores a descobrir quais são os meios mais adequados de ensino a seus aprendizes. Em outros textos analisaremos com maior profundidade cada uma delas.

GEOMÉTRICA:

DAVID JAMIESON | Carvão, pastel e lápis sobre papel (vídeo demonstrativo  13’17)

INTUITIVA:

https://vimeo.com/100528806

ZIMOU TAN | Desenho em carvão (vídeo demonstrativo, 9’40)

 

Parte do conteúdo a ser ministrado no Workshop
“ANATOMIA ARTÍSTICA com modelo vivo” (Porto Alegre | CCCEV)

 

Publicado por Gustavot Diaz

Artista visual e escritor, co-fundador do espaço artístico MÍMESIS | Conexões Artísticas em Curitiba, e ministrante do curso Processos Poéticos. Vive atualmente em Porto Alegre (RS).

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